Diante das rápidas transformações trazidas pela pandemia da Covid-19, recoloca-se novamente em debate a questão do papel do Estado, do seu tamanho e do modo como ele deve se relacionar com a sociedade civil, especialmente com o mercado.

Nos últimos anos, tem crescido muito a ideia de que deve haver um enxugamento da máquina pública e uma diminuição da intervenção do Estado na economia, ou seja, de que a forma tanto de enfrentar as crises econômicas recentes como de permitir maior autonomia e liberdade aos cidadãos seria o modelo do Estado Mínimo, chamado por muitos de neoliberalismo. Nesse contexto, prega-se uma “austeridade” nos gastos públicos, redução de servidores públicos, a privatização de empresas públicas, e uma redução da intervenção do Estado na regulação do mercado, que deveria se dar tão somente para manter a competitividade das empresas.

Queremos, então, neste texto, iniciar uma discussão sobre: 1) de um lado, quais as razões que um adepto do Estado Mínimo nos oferece para defender sua teoria e como seria a sua proposta política; 2) por outro lado, se o modelo de Estado Mínimo é capaz, realmente, de enfrentar os desafios que se apresentam à sociedade brasileira em face da pandemia e da crise, ou mesmo fora da pandemia.

Aqui, não pretendemos esgotar o tema. Trata-se de um ensaio que condensa nossas impressões iniciais sobre o tema, sendo um primeiro olhar sobre a matéria, que poderá ensejar novas pesquisas em nível acadêmico. Nosso propósito, portanto, é fazer uma abordagem que visa introduzir o debate, possibilitando que se possa refletir sobre algumas nuances do problema sem que se tenha ainda um estudo acadêmico de monta, o qual poderá ser uma decorrência de pesquisas posteriores.

Vejamos, assim, como o problema está posto conceitualmente, a começar por uma análise da ideia de “Estado Mínimo” e de sua fundamentação teórica.

Sob o slogan de “imposto é roubo”, os adeptos da teoria do Estado mínimo – aqui, chamados de libertaristas – buscam uma justificação filosófica para suas ideias na famosa obra “Anarquia, Estado e Utopia” (1973), do filósofo norte-americano Robert Nozick.

Para um libertarista[1], o papel do Estado deve restringir-se à proteção das trocas voluntárias e de segurança dos cidadãos[2], pois o importante são as liberdades de mercado. Opõe-se, assim, o mercado ao Estado: enquanto o mercado é inerentemente justo, porque garante um maior respeito aos direitos de propriedade e, portanto, uma maior autonomia, liberdade e autorrealização dos cidadãos ao fazerem trocas justas num livre mercado; o Estado deve ter limitadas as suas atividades, pois políticas sociais sempre acarretam ingerência indevida e injustificada na vida das pessoas, além de se tratarem de paternalismo.

Para justificar o Estado mínimo e a prevalência do mercado, Nozick parte do princípio da “posse de si mesmo”, que é interpretado como na fórmula kantiana de tratar as pessoas como fins em si mesmas. Assim, para Nozick, uma determinada pessoa também possui os seus talentos, de modo que tudo que essa pessoa consegue auferir daqueles talentos não pode ser tributado e nem redistribuído para políticas de bem-estar de outros cidadãos que se encontram em situação desfavorável, pois isso seria uma violação do princípio da “posse de si mesmo”.

O que é importante para Nozick é apenas saber se a maneira pela qual uma pessoa obteve determinados bens se deu de forma justa (aquisição justa, sem fraude). Uma vez que a aquisição inicial de bens tenha se dado de maneira justa, o princípio da “posse de si mesmo” garante que não possa ocorrer qualquer coerção sobre os bens dessa pessoa, enquanto o sistema de trocas num livres mercado garante, ao mesmo tempo, os direitos de propriedade, autonomia e liberdade.

No entanto, o libertarismo, por meio do princípio da “posse de si mesmo”, consegue, realmente, conferir igualdade moral, autonomia e respeito a todos os cidadãos?

Da descrição acima – ainda que de maneira bastante resumida – já se pode perceber que a aposta muito alta na “posse de si mesmo” e num mercado irrestrito pode apresentar uma série de problemas. Esses problemas se dão tanto no nível filosófico como no nível empírico.

No nível filosófico, o princípio da “posse de si mesmo” pode acarretar a desconsideração de igualdade e dignidade morais a pessoas que não consigam ser premiadas num regime de livre mercado. A teoria de Nozick é indiferente ao fato de que pessoas que, por algum motivo, não tenham condições de fazerem trocas justas num livre mercado não podem ser relegadas à morte (de fome, doenças etc.).

Além disso, ainda no nível filosófico, políticas redistributivas não limitam a autodeterminação dos indivíduos. Pelo contrário, elas permitem que ocorra uma distribuição mais equitativa das oportunidades para que as pessoas consigam ter um real controle sobre as suas vidas, sem que se submetam a situações degradantes de trabalho e sem que sejam relegadas às agruras da vida.

Não nos parece intuitivo nem razoável supor que uma pessoa optaria por um regime libertário se soubesse que algo crucial para sua autodeterminação e realização de seus projetos de vida dependesse, em grande medida, de circunstâncias morais arbitrárias – como os talentos que seriam premiados num livre mercado ou mesmo o fato de terem nascido numa família abastada. No modelo de Nozick, não há nenhum princípio que corrija essas circunstâncias.

Nesse sentido, nem todo imposto é injusto, isso porque é através deles que conseguimos retificar as circunstâncias injustas às quais as pessoas podem ser submetidas. Através deles conseguimos ter acesso a serviços e oportunidades que não temos condições concretas de fornecer a todos, dado que os próprios recursos materiais da natureza são escassos. Além disso, a tributação tem o potencial de impedir uma série de conflitos que podem ocorrer na sociedade. Por exemplo, a construção de estradas pelo governo evita conflitos sobre a posse da estrada.

Uma política libertária, por sua vez, limita a atuação estatal à segurança (pessoal e dos contratos) e procura garantir as trocas voluntárias. Quaisquer políticas redistributiva, de assistência social, educação, saúde etc. não são justificadas. Ela tem como meta somente o resguardo de direitos individuais, descabendo, portanto, pensar-se em uma estratégia libertária que possa envolver a defesa do coletivo. Não há coletividade na visão libertária. O Estado não deve intrometer-se no direito de ir e vir de cada um, tampouco pode fornecer auxílios e ajudas econômicas às pessoas que, porventura, encontrem-se em situação de grave crise econômica e de desemprego.

Se, nesse sentido filosófico e político, é difícil justificar um Estado Mínimo aos moldes do elaborado por Nozick, isso se torna ainda mais problemático no nível empírico.

Nozick faz uma alta aposta no livre mercado como sistema que permite uma maior autonomia, autodeterminação e liberdade na vida dos indivíduos. Para ele, em toda e qualquer circunstância um sistema de livre mercado é preferível para realizar aqueles valores do que em qualquer outra situação imaginável. Não que a liberdade de mercado não seja algo desejável em determinadas condições de desenvolvimento social e econômico. Mas o que resta evidente em tempos de crise econômica e sanitária é que tal modelo mostra-se extremamente frágil para o enfrentamento dessas adversidades – e, certamente, também em tempos de normalidade –, uma vez que os problemas com o mercado, com a desigualdade social e com as questões sanitárias não são específicas somente desse período, ainda que agora reconheçamos que temos um aguçamento desses problemas.

O “leviatã” se apresenta aqui não só como o garantidor da segurança das pessoas no sentido clássico, mas também como agente mantenedor da vida e de condições de bem-estar social, como emprego, renda, saúde, educação – além, também, de ser essencial para a manutenção de funcionamento de empresas públicas e privadas.

Sendo assim, conforme dito acima, se em situações “normais”, o papel do Estado não pode se limitar a ser apenas uma espécie de Estado Vigia – pois isso tem como implicação a desconsideração de muitas pessoas –, em situações de pandemia a importância do Estado se explicita, mostrando-se não só necessária como fundamental para o bom funcionamento da vida em sociedade, especialmente quando se tem uma necessidade extrema de controle da circulação das pessoas, do incremento na aquisição de equipamentos médicos em um mercado extremamente complexo e competitivo, onde o setor público de saúde é fundamental para dar conta do atendimento de milhões e milhões de pessoas que são diariamente vitimados por um vírus extremamente agressivo. Sem falar em controle de fronteiras, na preservação de empregos e na regulação do mercado em áreas de extrema necessidade como alimentação e saúde.

Com efeito, a que parece a ideia de um Estado Mínimo ou Estado Vigia, apresenta-se sob uma formulação “utópica” de mundo, desacoplada do contexto do mundo em que vivemos – o que é, inclusive, ressalvado pelo próprio Nozick em seu livro. Essa ideia não dá conta da resolução de um grande contingente de problemas complexos da realidade, que afetam toda a sociedade – quiçá o mundo –, na medida em que o contexto da pandemia explicita a extrema necessidade da presença do Estado na vida das pessoas, das sociedades e do mercado.

De um lado, o aspecto da individualidade é algo positivo em Nozick. Tal ideia encontra bons defensores na tradição do liberalismo clássico, como em Kant, e, mais recentemente, na obra de John Rawls, com o seu construtivismo. De outro lado, é preciso olhar o mundo real, o contexto social, político e econômico em que vivemos, para aferir que condições normativas seriam possíveis nesse contexto e como fazer justiça social em um ambiente complexo como o que vivemos – o que não significa, no entanto, desconsiderar as boas ideias e reflexões realizadas pelas análises políticas meramente normativas ou formais, como as de Nozick.

Mesmo Hegel e alguns dos seus seguidores defendem a ideia de que há de se respeitar um núcleo de direitos individuais e que as imposições estatais devem guardar algum tipo de respeito a esse núcleo. Contudo, não há como se advogar a ideia de que a ação puramente individual e egoística dá conta da complexidade de um mundo social onde cada indivíduo interfere explicitamente na liberdade dos outros e onde nós, como sujeitos, já nascemos dentro de uma realidade onde regras e normas são dadas socialmente. Partindo de Hegel, Axel Honneth, na sua obra “O Direito da Liberdade”, lembra que a liberdade se dá em progresso, onde as liberdades individuais são o início, mas o final vai se dar na eticidade, ou seja, na liberdade social.

Nesse sentido, a questão da solidariedade não nos parece destituída de sentido prático. Muito pelo contrário. O aporte de recursos para fazer face às despesas do enfrentamento da pandemia dependerá de uma definição de onde serão retirados esses recursos. Quem custeará tal despesa? Caberá ao Estado fazer isso? Ou deve ser colocada sob as costas de cada um, individualmente? A resposta a essa questão tem relevância, dado que os recursos são finitos e que será necessário que, em alguma medida, haja a criação de novas fontes de custeio – fontes essas que poderão recair sobre a população como um todo ou sobre parte dela.

Há quem defenda que tal despesa seja custeada pelos servidores públicos. Alegam que, como muitos trabalhadores da iniciativa privada irão para suas residências e outros tantos poderão até mesmo perder o emprego, o custo de tal empreendimento deverá recair sobre os servidores públicos – já que estes, embora também fiquem em casa no período, não correrão o risco de perderem seus empregos.

A pandemia do coronavírus vem mudando a forma como alguns estados nacionais vinham lidando com a economia e com as questões sociais. Alguns, com governos fortemente voltados para uma agenda libertária e de Estado Mínimo, como é o caso do Brasil, tiveram que dar uma guinada em suas agendas político-econômicas com a finalidade de enfrentar a ameaça do vírus. Onde se tinha como meta o esvaziamento do papel do Estado de bem-estar, ressurge com força o intervencionismo estatal e políticas voltadas à proteção da coletividade.

Aprovação de medidas como auxílios, fomento a empresas, financiamento da atividade econômica, proteção do contrato de trabalho de trabalhadores que poderiam ser vítimas de desemprego, entraram na ordem do dia e se encontram pautadas nos parlamentos de vários países. Os Estados Unidos da América aprovaram o maior pacote econômico de apoio a empresas e trabalhadores desde a Segunda Guerra Mundial.

A solidariedade social torna-se, pois, a mola mestra do mundo, sendo fundamental para o enfrentamento de crises dessa natureza. Tratando-se de uma crise com proporções globais, torna-se ainda mais imperioso pensar-se em uma solidariedade que seja também Pós-Nacional, ou seja, que envolva todos os habitantes do planeta. Uma cidadania integrada, cooperativa e que conduza os cidadãos de todos os lugares a uma nova forma de relação política entre os povos e entre si mesmos. Isso, é claro, demanda um novo olhar para os outros povos, para além dos nacionalismos xenófobos e em contraste com visões de mundo que buscam um retorno ao ideal do Estado-nação, atualmente incapaz de dar conta dos problemas do mundo globalizado em que vivemos.

É preciso um novo engajamento moral dos indivíduos com questões que são comuns a todos, ou, como lembra Sandel, “uma vida cívica mais sadia e engajada do que essa à qual estamos habituados”[3], o que envolve, por óbvio, a necessidade de vermos o outro como um semelhante e de termos com ele uma relação de reconhecimento que possibilite uma vida boa e integrada consigo mesmo e com a sociedade como um todo, em atitude cooperativa.

A crise do coronavírus evidencia que não será possível a nossa permanência neste planeta se não estivermos devidamente conectados numa sociedade global cooperativa, onde a solidariedade com os nossos semelhantes seja a essência de uma nova forma de vida. O mundo precisa estar conectado também em relação ao enfrentamento de crises como essas, de modo que a ideia de Estados-Nação que, por si sós, teriam condições de atuar em situações dessa natureza se apresenta como algo superado e que não atende às demandas do mundo contemporâneo.

Sem uma efetiva intervenção do Estado, não dá para imaginar que conseguiremos enfrentar desafios da magnitude da atual pandemia apenas como sujeitos atomizados, egóicos e isolados. A construção de uma nova justiça, cooperativa e solidária, impõe-se como fundamento normativo dos desafios a serem buscados nos próximos anos.

[1] Utilizaremos a expressão “libertarista” ao invés de “libertário”, em consonância com o uso dado por Kymlicka.

[2] “A conclusão da teoria da titularidade de Nozick é que “um Estado mínimo, limitado às funções estritas de proteção contra força, roubo, fraude, imposição de contratos etc., é justificado; qualquer Estado mais amplo violará os direitos das pessoas de não serem forçadas a fazer certas coisas e é injustificado” (Nozick, 1974: ix). Portanto, não há nenhuma educação pública, nenhuma assistência médica pública, transporte, estradas nem parques. Todos eles envolvem a tributação coerciva de algumas pessoas contra a sua vontade, violando o princípio “de cada um, como escolher, para cada um, como escolhido”” (KYMLICKA, 2006, p. 123).

[3] Segundo Sandel, “um comprometimento público maior com nossas divergências morais proporcionaria uma base para o respeito mútuo mais forte, e não mais fraca. Em vez de evitar convicções morais e religiosas que nossos concidadãos levam para a vida pública, deveríamos nos dedicar à elas mais diretamente – às vezes desafiando-as e contestando-as, às vezes ouvindo-as e aprendendo com elas” (SANDEL, p. 330).

Por Marcos Luiz da Silva

Bel. Em Direito. Especialista em Direito Público. Mestre em Filosofia. Advogado da União.

E Vinicius Brito

Bel. em Direito. Advogado Criminalista.

 

HONNETH, Axel. O direito da liberdade. Tradução Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Tradução: Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

SANDEL, Michael. Justiça – o que é fazer a coisa certa. Tradução Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 12ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins fontes, 2006.

SINGER, Peter. Ética prática. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.