Há um relativo consenso de que a pandemia ora experimentada terá consequências sociais que, na atualidade, ainda não é possível precisar, muito embora ninguém – minimamente informado e não atingido por alguma paranoia negacionista – consiga sustentar que a magnitude de seus efeitos adversos possa ser negligenciada.
Conforme projeta a Cepal, a queda na economia alcançará um percentual que excede a cinco pontos (tudo indica que será ainda maior), o que colabora enormemente para agravar o quadro da desigualdade e da pobreza extrema, com todas as consequências delas decorrentes. (CEPAL, 2020). Conforme conclui o estudo, a pandemia será a causa da maior crise econômica e social da região em décadas, com efeitos muito negativos sobre o emprego, a luta contra a pobreza e a redução da desigualdade. (CEPAL, 2020).
Até economistas de arraigada tradição liberal vêm reconhecendo que, pelo menos diante do cenário atual, há de se exigir do Estado uma postura ativa, especialmente no sentido de proteger aqueles mais fragilizados, sob o risco de uma crise humanitária até mais grave e duradoura do que a pandemia. Como sustenta Lara Resende, “até os mais empedernidos defensores do equilíbrio fiscal – e no Brasil de hoje eles dão as cartas – reconhecem que diante da crise é preciso que o Estado gaste para evitar uma verdadeira catástrofe humanitária”. ( RESENDE, 2020). Nesta linha, Monica de Bolle defende a instituição de um programa de renda básica universal e sustenta que “sem o cuidado das pessoas, não há economia que resista ao choque inédito que testemunhamos”, (DE BOLLE, 2020).
Por sua vez, Kanni Wignaraja, representante do PNUD, da própria ONU, alerta que “se não houver um piso mínimo de renda para o qual recorrer quando esse tipo de choque maciço acontece, as pessoas literalmente não têm opções”. Em vista disso, vaticina que “sem os meios para se sustentar, é muito mais provável que sucumbam à fome ou a outras doenças, muito antes de a COVID-19 chegar a elas”. (WIGNARAJA , 2020).
Se isso é significativo para outros países, não há como negligenciar sua importância em relação ao Brasil. A efetivação de um programa de renda básica que possa atender aqueles que já estão a viver abaixo da linha de pobreza (números de 2017 já apontavam 55 milhões), bem como aqueles que serão empurrados para esse abismo, trata-se de algo que se impõe indiscutivelmente. Os efeitos econômicos e sociais a serem sentidos por alguns anos, no Brasil em especial, serão dramáticos e podem tornar-se socialmente caóticos e potencialmente conflitivos.
Não se ignora, pois, que algo dessa natureza existe no Brasil há quase duas décadas (Programa Bolsa-família). Porém, também não há de se olvidar que, não obstante os significativos efeitos no combate à pobreza extrema, trata-se de uma política pública com notórias limitações, tanto no campo de sua abrangência, quanto – de uma forma mais significativa – montante de renda efetivamente transferida.
É certo que a implementação de um programa de renda mínima e universal (a luta de uma vida toda do ex-Senador Eduardo Suplicy) para aqueles que vivem abaixo da linha de pobreza não tem o condão de neutralizar os efeitos de tamanha crise. Porém, poderá servir como uma espécie de “dique de contenção” ao caos social que se avizinha, à miserabilidade, que já avilta a quem nela vive e agride ao olhar daqueles que não perderam a capacidade de se sensibilizar, com toda sorte de degradação da vida na sociedade brasileira.
Se argumentos de ordem humanitária são pouco convincentes, basta deixar que a racionalidade econômica – capitalista – possa ser ouvida e que seja “descoberta”. O gasto público com um programa de renda básica tem a concreta possibilidade de ser fortemente revertido em benefício daqueles que historicamente negavam a sua legitimidade.
Concomitantemente à instituição de um programa de renda mínima, porém é imprescindível que seja viabilizada uma reforma tributária estrutural, que possa minimamente corrigir aquilo que vem sendo denunciado há tanto tempo: o efeito regressivo da carga fiscal. No Brasil, a tributação constitui uma verdadeira forma de “redistribuição de renda às avessas”, especialmente mediante a indiscriminada – e pesada – incidência sobre o consumo (portanto regressiva) e, por outro lado, pela débil oneração do patrimônio e da renda (sobretudo aquela proveniente do capital) (DE BOLLE, 2020). Sem isso, qualquer programa dessa natureza terá seus efeitos parcialmente neutralizados pelo próprio ente instituidor que, se de um lado, transferiria renda (em valores que dificilmente seriam substanciais no Brasil), por outro, imperceptivelmente retiraria quase a metade dessa renda mediante a tributação indireta.
Para superar isso, basta fazer uma desoneração total de uma gama de produtos essenciais, que são notoriamente consumidos pela parcela da população com menor poder aquisitivo ou, de uma forma talvez mais eficaz, criar um programa de restituição de tributos indiretos pagos na aquisição de gêneros de primeira necessidade, a beneficiar justamente aqueles que serão alcançados pelo Programa de Renda Básica.
Enfim, estamos diante do maior desafio enfrentado por nossa geração. A forma como nos conduzirmos determinará, inexoravelmente, o futuro de uma maneira sem precedentes.
Parafraseando Žižek, podemos não ter controle quanto à finitude da própria existência, mas somos inteiramente responsáveis pelo que seremos lembrados. Nessa encruzilhada histórica, as escolhas farão com que nossos pósteros tenham orgulho ou vergonha daquilo que fizemos ao tempo que nos foi possível fazer. Esta é a magnitude do desafio!
Marciano Buffon, Pós doutor e doutor em Direito, Professor Unisinos.
Referências.
COMISSÃO ECONÔMICA PARA AMÉRICA LATINA E CARIBE (CEPAL). Dimensionar los efectos del COVID-19 para pensar en la reactivación. Abr. 2020. 21 p. Disponível em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/45445-dimensionar-efectos-covid-19-pensar-la-reactivacion. Acesso em 11 mai. 2020.
DE BOLLE, Monica. A agenda da cidadania. In: Cidadania 23. Brasília, 18 mai. 2020. Disponível em: https://cidadania23.org.br/2020/05/13/monica-de-bolle-a-agenda-da-cidadania/. Acesso em 18 mai. 2020.
PNAD 2015: rendimentos têm queda e desigualdade mantém trajetória de redução. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?busca=1&id=1&id noticia=3312&t=pnad-2015-rendimentos-tem-queda-desigualdade-mantem-trajetoria-reducao&view=noticia. Acesso em 20 mai. 2020.
RESENDE, André Lara. “Posição ideológica que restringe gasto público”. In: Valor Econômico, Rio de Janeiro, 29 abr. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/29/andre-lara-resende-critica-posicao-ideologica-que-restringe-o-gasto-publico.ghtml. Acesso em 07 mai. 2020.
WIGNARAJA, Kanni. “COVID-19: ONU defende renda básica universal para combater desigualdade crescente” [Entrevista cedida a] UM NEWS. ONU, 06 mai. 2020. Disponível em: https://nacoesunidas.org/covid-19-onu-defende-renda-basica-universal-para-combater-desigualdade-crescente/. Acesso em 20 mai. 2020.