Uma grande empresa no Brasil lançou um programa de contratação de “trainees” apenas para candidatos negros, justamente depois de haver constatado que não havia a diversidade necessária em seus cargos de liderança.
Não há dúvidas, pois pesquisas oficiais do IBGE demonstram isso, que trabalhadores negros possuem mais dificuldades de acesso ao mercado de trabalho se comparados a trabalhadores brancos e, mesmo quando são contratados, recebem até 31% (trinta e um por cento) menos como contraprestação pecuniária.
Pois bem. O Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.228, de 20 de julho de 2010, demonstra algumas definições legais que são importantes para compreensão do tema. Nesse sentido, desigualdade racial é: ´”toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica.” (art. 1º, inciso II).
E o que são ações afirmativas? O Estatuto também responde, eis que são “programas e medidas especiais adotadas pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades” (art.1º, inciso VI).
Além disso, segundo a lei, quando trata do direito social ao trabalho (art. 39), essas ações afirmativas devem ser incentivadas pelo poder público nas empresas e organizações privadas, com programas de acesso a empregos, por exemplo, o caso da seleção para candidatos negros. Ações afirmativas, pois, não devem partir apenas do Estado, mas também da iniciativa privada.
Essas ações afirmativas não ferem, não maculam o princípio da igualdade previsto no art. 5º da Constituição Federal. Alguém pode dizer: mas por que não fazem uma seleção apenas para brancos? Isso é uma grande discriminação em relação aos brancos!
Na verdade, o princípio da igualdade tem uma natureza formal e, para que seja materialmente cumprido, necessário que se entenda o princípio da diferença. Nesse sentido, por que não existe uma seleção apenas para brancos?
Porque os brancos não foram submetidos anos e anos de escravidão, que no Brasil perdurou por quase 400 (quatrocentos) anos. Porque os brancos não foram arrancados do seu solo originário em navios “branqueiros” e levados para trabalhar em lugares distantes de suas raízes culturais. Porque os brancos não são vítimas de racismo recreativo em face de suas características físicas. Porque os brancos não são submetidos a racismo institucional, eis que muitas instituições, sejam elas públicas ou privadas, inclusive o próprio Poder Judiciário, são controladas por pessoas brancas.
Nesse sentido, a branquitude como significante cultural, como explica Adilson Moreira, entende que a superioridade racial é produto direto da transformação dos membros do grupo racial dominante “como referência cultural, como referência estética, como referência de superioridade moral, de superioridade intelectual, de superioridade sexual e de superioridade de classe.” (in: MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. p. 55).
Então, quem se incomoda com esse tipo de ação afirmativa carrega consigo os resquícios e significantes culturais que contribuem para que os negros se mantenham ainda aquém das políticas publicas de igualdade racial. É como se a igualdade racial já existisse e que não precisaria mais ser conquistada. Isso faz parte de um projeto colonial que, infelizmente, parece que ainda não foi rompido.
Assim, as iniciativas que contribuem para a efetividade da igualdade racial entre brancos e negros no mercado de trabalho, com efeito, encontram-se amparadas na lei e no princípio da igualdade previsto na Constituição Federal.
Tais ações afirmativas além da moldura legal, inclusive, devem ser louvadas quando partem da própria iniciativa privada, pois em tais casos a empresa reconhece sua responsabilidade social e impõe medidas práticas para minorar os desníveis de acesso ao mercado de trabalho entre brancos e negros, em especial em postos de comando.
E mais. Além da desigualdade racial as empresas deveriam também perceber a desigualdade de gênero no que diz respeito ao acesso ao mercado de trabalho, considerando também a distancia social entre as mulheres negras e os demais segmentos sociais.
Se essas ações afirmativas forem aplicadas a contento, em breve teremos a verdadeira igualdade materializada no mercado de trabalho. É preciso que os brancos reconheçam seus privilégios, não apenas no mercado de trabalho, mas também nele e, além disso, contribuam para minorar os desníveis ainda existentes quando o tema é igualdade racial.
Por Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz
Juiz do Trabalho, Professor Efetivo do Curso de Bacharelado em Direito da UESPI, Mestre em Direito – PUCRS, Coordenador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça e Efetividade (UESPI)