O grande problema de identificar quando há ou não racismo estrutural é que grande parte de nós estamos imersos nessa estrutura social que cria hábitos e reproduz comportamentos que sedimentam discriminações em razão da cor da pele, mas não nos damos conta disso porque tais condutas são vistas com normalidade. A naturalização de determinados comportamentos e práticas sociais é o que torna o racismo “estrutural” e isso dificulta a muita gente perceber-se como parte de um processo estrutural em que há gente privilegiada e outros subalternizados, não sendo também incomum que pessoas que sofram os efeitos desse processo histórico e social também não percebam que estão sendo de alguma forma vítimas de uma sociedade excludente.

Trata-se de um racismo que se esconde e submerge diante da falácia da democracia racial, propalada nos livros, discursos públicos e imprensa há décadas. Para quem defende essa ideia, o Brasil é um País miscigenado e feliz, e onde não existem brancos, negros e índios, mas uma grande mestiçagem e onde todas essas etnias convivem cordialmente. Contudo, quando se analisa mais a fundo a questão social brasileira, se percebe que o nosso contexto está longe dessa utopia. Os dados e estatísticas apontam para uma exclusão cidadã de grande parte da sociedade brasileira, no caso, negros e índios. Isso demonstra que há um tipo de racismo que é normalizado, que as pessoas não percebem que existe, porque de tão normal nós nos acostumamos a ver alguns hábitos ou costumes como algo natural, e não como racismo.

Portanto, é preciso ir além dessa aparente “normalidade” e mergulhar a fundo na estrutura da sociedade. O chamado racismo estrutural está em todos os setores da sociedade, e em geral as pessoas não percebem que há ali um ato de racismo. Ele é naturalizado, ás vezes imperceptível, gerando uma sensação de que sempre esteve aí e que não é nada mais nada menos que a cultura popular que temos. Mesmo pessoas que racionalmente se colocam contra o racismo cometem tipos de “micro racismos” em seu dia-a-dia, algo que acontece também no âmbito da misoginia e do machismo estrutural existente na sociedade. E a parte mais perceptível desse tratamento excludente que decorre desse racismo sistêmico é a abissal e vergonhosa desigualdade social existente no País, uma das maiores do mundo, e que praticamente cria dois mundos em nossa sociedade: a dos privilegiados, pessoas que comem todo dia e tem uma vida confortável e digna; e a dos excluídos, subalternizados, em geral pretos e índios, que continuam ano a ano com pouca possibilidade de ascensão social e que padecem de mazelas como a pobreza, a falta de trabalho, de salários mais baixos, de pouca escolaridade e de maiores óbices para a participação política. Os dados do IBGE apontam para isso e praticamente confirmam a existência dessa condição “patológica” da sociedade brasileira desde a colonização e com efeitos nefastos que nos alcançam até os dias de hoje[1].

Essa divisão nacional decorrente da desigualdade, que cria um mundo de sonhos para uma parcela ínfima da população nacional e que exclui o restante, em geral é justificada ideologicamente como algo de ordem meritocrática, de modo que a meritocracia se vincula diretamente a existência e manutenção de uma estrutura racista. Resumindo a questão meritocrática em uma frase: “Quem estar no andar de baixo não se esforçou; eu que cheguei no topo me esforcei e conquistei meu lugar”. Se o negro ou negra não entra em um curso de medicina ou direito de uma universidade pública, isso se deu porque “não estudou o suficiente”. Se não passou em um dificílimo concurso de Juiz ou Procurador é porque “não se preparou de forma correta, ou não tem capacidade para o cargo”. Se não ocupa um cargo importante em uma empresa é porque “ainda não tem experiência e capacidade de gestão para ocupar tal cargo”. Esse é o discurso corrente e que é comprado por muitos negros e negras, inclusive, de modo que em muitos casos os grupos excluídos são responsabilizados pela sua exclusão de bens econômicos, como se a ele fossem dadas as mesmas chances e condições de competitividades que são dadas às classes mais favorecidas. Nesse caso, compõe o cenário a ideologia da meritocracia, acobertando e mascarando atos de exclusão social e de racismo sob a falsa ideia de que todos têm oportunidades iguais e que basta se esforçar que se chega ao longe, o que não corresponde à realidade em que vivemos.

O que se percebe, nesse contexto, é que há um atravessamento da questão distributiva (e econômica) pela questão do racismo, que estão amalgamadas no contexto histórico brasileiro. Não são duas questões estanques, separadas, e que devem ser tratadas de forma isoladas. Elas compõem o mesmo contexto, e se relacionam, de modo que se deve vê-las como fatores que se influenciam entre si, e que decorrem de uma realidade em que o negro e o indígena foram ao longo da nossa evolução histórica objeto de grave exclusão. Um exemplo é o da empregada doméstica: a grande maioria das empregadas domésticas são negras, o que demonstra que a essas mulheres é negada ao longo da sua vida oportunidades e condições para que possam ter ascensão. Poucas conseguem mudar de vida e chegar a profissões mais complexas e melhor remuneradas. São mulheres que são tratadas praticamente como não pessoas. Colocadas em quartinhos isolados, muitas vezes insalubres, são destituídas de humanidade e invisibilizadas, tornadas coisa por ação de patrões que não veem tais pessoas como seres humanos[2]. Além de criar uma baixa autoestima no sujeito negro que o leva a condição de sentir-se inferiorizado, o que configura uma outra violência psicológica que é pouco percebida pelas pessoas e que termina por ter uma interferência relevante no modo como essas pessoas se enxergam socialmente e na identificação dos seus próprios potenciais para o enfrentamento da competitividade que envolve o mercado de trabalho capitalista. São pessoas que terminam por ser violentadas duplamente: no mundo real, com a negativa de oportunidades concretas; e interiormente, com o aviltamento da sua própria condição em razão da ideologia racial que estabelece a ideia de que negros e indígenas seriam menos capacitados que as pessoas brancas[3].

Aqui temos uma coisificação do ser humano que serve a dois interesses: ao próprio interesse econômico da elite nacional, que paga péssimos salários a essas pessoas, além de lhes negar acesso a muitos direitos e melhores condições de trabalho; e ao mesmo tempo serve ao interesse do racismo, que, oculto, nutre-se dessa posição social e econômica privilegiada para reproduzir-se continuamente, e toma a manutenção de péssimas condições de trabalho como o melhor meio para manter um grande contingente de pessoas negras fora de alguma possibilidade de ascensão. Ou seja, impede-se que essas pessoas sejam reconhecidas em suas potencialidades humanas, o que de alguma forma facilita a manutenção de certos privilégios de classe (como, por exemplo, mão de obra barata para o trabalho doméstico) ao tempo em que afasta de grupos subalternizados a possibilidade de acesso a estudo de qualidade e mesmo de dispor de tempo e condições financeiras para usufruir de alguma oportunidade estudo, quando esta surge.

Pensar em racismo estrutural envolve pensar em algo que não é perceptível a olho nu, em um primeiro momento. Crimes que aparentemente não possuem explicitamente uma conotação racial ao serem comparados com outros milhares de fatos semelhantes se encaixam em um padrão de conduta ou em um hábito social. O racismo estrutural não pode ser mensurado a olho nu em grande parte das suas manifestações. O olhar tem que ser crítico, e a busca tem que ser ampla. Esses grupos excluídos são fortemente atingidas em seu dia-a-dia por práticas discriminatórias que criam diversos impedimentos para o desenvolvimento pessoal desses sujeitos e para o seu reconhecimento enquanto indivíduo autônomo, óbices esses que a acompanham a vida desse sujeito desde antes do seu nascimento e terminam por se refletir na vida dos seus descendentes. Segundo Silvio Almeida, “O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional”[4].

A desigualdade social e econômica é de fato o grande problema nacional e tem que ser equacionado com ações que possam criar um contexto de maior redistribuição de renda e de oportunidades, o que envolve forte ação do Estado em educação, saúde, e assistência social. Contudo, não dá para desconectar a desigualdade social no Brasil do racismo estrutural, que talvez seja sua maior causa. Não há como negar que historicamente os negros no Brasil foram alijados de grande parte da cidadania. Estão entrelaçados, amalgamadas, correlacionadas por uma contingência histórica de exclusão e de completa inércia em relação ao povo negro e indígena. Não dá para negar, por exemplo, que no pós-escravidão os negros foram jogados nas ruas sem qualquer cuidado e sem qualquer amparo, em uma selva em que tinham que se virar por conta própria dentro de uma estrutura de “estado mínimo” onde não tinham qualquer auxílio para que pudessem se desenvolver como cidadãos. Não dá para não lembrar que não tiveram ao longo da nossa história acesso à escola, à universidade, e que mesmo agora, passados tantos anos do fim da escravidão a grande maioria da população brasileira pobre seja formada por negros e indígenas.

Há nessa forma de tratar esses grupos mais marginalizados uma seletividade na forma com atua a nossa sociedade, e isso vem se reproduzindo ao longo das décadas de modo que chegamos aos dias de hoje ainda com um grande contingente de pessoas negras na pobreza (são maioria) e sofrendo com o encarceramento em massa (negros compõe a imensa maioria da população carcerária no Brasil). Como afirma Almeida, “falar sobre raça e economia é essencialmente falar sobre desigualdade”[5].

Ainda que se possa entender que existem outras causas para a pobreza no Brasil, não se pode deixar de ver que a forma como as populações negras foram tratadas no país desde a sua fundação teve uma forte influência nesse estado de coisas, uma vez que os mecanismos de reprodução social são fruto de um conjunto de hábitos, crenças e costumes arraigados e que ao longo da nossa história se corporificaram em atos concretos e outros nem tão ostensivos de discriminação racial. Quando se pensa, por exemplo, que o Brasil continua patinando economicamente e embora tenha avanços em alguns momentos termina patinando em seu desenvolvimento, não seria razoável imaginar que o que nos impede de nos desenvolvermos seja uma ideologia disseminada socialmente de que não cabe se deve repartir esse bolo com a comunidade negra e indígena? Não é possível imaginarmos que há nessa condição algo intrínseco ao nosso povo que é o sentimento de que há uma superioridade de uma parte da população brasileira, os brancos, em relação aos negros e indígenas? Isso se confirma em muitos momentos com manifestações mais explicitas de racismo, como quando se viu recentemente uma autoridade dizer em alto e bom som que os “índios são gente”, algo que não deveria sequer estar em cogitação.

A conexão entre racismo e desigualdade, ou o amálgama “preconceito de classe e preconceito de raça” podem ser evidenciados em dados relacionados ao histórico abandono dos negros, mestiços e indígenas do país ao longo da sua história. Como bem coloca Jessé Sousa, o tal “jeitinho” brasileiro serviu como forma de ocultar determinados processos de dominação que historicamente estão presente em nossa sociedade. Ou seja, ao generalizar indevidamente um privilégio de classe como característica de toda a sociedade, a “sociologia do jeitinho” homogeneíza falsamente a realidade social ao esconder precisamente as causas do privilégio e da dominação social permanente” (SOUZA, p 90). Dominação essa que se perpetua de modo quase imperceptível, através de uma “rede invisível” de hábitos e costumes que proporcionam aos que são marginalizados pouca possibilidade de ascensão, e aos que estão no topo econômico a permanência hereditária em uma condição histórica familiar de conforto e bem-estar. Economicamente, percebe-se que tal rede permeia todo o tecido social, criando barreiras e óbices para que os negros, indígenas e outras etnias não brancas possuam condições básicas de competitividade em uma sociedade guiada pela ideia de sucesso e pela falácia da meritocracia. E principalmente: em um sistema em que a riqueza é distribuída de forma profundamente injusta, em que uma pequena parte da população detém a maior parte do “bolo” e em que a maior parte fica de fora, o que cria um verdadeiro “abismo” social a perpetuar uma situação de descaso e indignidade.

Enfim, o racismo estrutural não é uma fantasia e faz parte do nosso dia-a-dia, e isso merecer ser objeto de uma profunda reflexão da sociedade brasileira para que possamos transformar o país, tornando-o mais diverso, plural e acima de tudo, menos desigual. Pensar a desigualdade a partir da sua origem no racismo estrutural é pensar em mudar estruturas sociais e possibilitar uma ampliação de cidadania e o enfrentamento de estruturas sociais arcaicas e discriminatórias de forma a possibilitar o devido reconhecimento aos grupos subalternizados. Não, a desigualdade não caiu do céu, e o fato de estamos décadas após décadas mantendo populações negras e indígenas em situação de subalternidade é um bom indicativo de que sim, somos um povo profundamente racista. É preciso reconhecer isso, e mais do que nunca pensarmos em formas de transformar essa realidade injusta e possibilitar que realmente tenhamos algo que nunca tivemos: uma democracia material, efetiva, com pluralidade e justiça social para todos.

[1]Para o professor Otair Fernandes, doutor em Ciências Sociais e coordenador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Leafro/UFRRJ), a realidade do Brasil ainda é herança do longo período de colonização europeia e do fato de ter sido o último país a acabar com a escravidão. O professor ressalta que, mesmo após 130 anos de abolição, ainda é muito difícil para a população negra ascender economicamente no Brasil. “A questão da escravidão é uma marca histórica. Durante esse período, os negros não tinham nem a condição de humanidade. E, pós-abolição, não houve nenhum projeto de inserção do negro na sociedade brasileira. Mesmo depois de libertos, os negros ficaram à própria sorte. Então, o Brasil vai se estruturar sobre aquilo que chamamos de racismo institucional”, lembra. In:

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/17eac9b7a875c68c1b2d1a98c80414c9.pdf

 

[2] “Como adverte Valter Silvério (2004), é possível pensar a dinâmica das relações raciais no Brasil, a partir de um imaginário social que, pela sua pluralidade e multiplicidade, contrasta com a “rígida” idealização de que formamos uma nação em que a miscigenação biológica teria transbordado para todas as esferas da vida social. O autor observa que a continuidade dessa idealização está atravessada por práticas ancoradas em “verdades” (constituídas em diferentes momentos históricos por conhecimentos de caráter religioso, científico, etc.) que destinam um lugar de não humanidade ou quase humanidade para os não brancos” (JARDIM, 2013, p. 86).

[3] “Numa sociedade multirracial, racista, de hegemonia branca, o “a posteriori” B se produz no momento em que o negro enfrenta peito-a-peito as condições concretas de opressão em que está imerso. O cotidiano é pródigo em situações em que o negro se vê diante de falsas alternativas, insatisfatórias todas: afirmação/negação, exploração, dominação/submissão. O discurso do nosso Correia é radical: na formação do Ideal do Ego não lhe escapa nenhuma das características básicas do modelo racista e capitalista. Seu Ideal de Ego é fundado na dupla opressão de classe e de cor. Radicalização maior podemos ver em Natanael, que toma como modelo não só o dominador, mas o Ideal do Ego do dominador”. (SANTOS, Neusa).

[4] “O racismo é estrutural.39 Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição”.40 Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas”. (ALMEIDA, p. 35).

[5] “Tanto para aqueles que definem a economia como a ciência que se ocupa da escassez, como para os que a consideram como o conjunto das relações de produção, o certo é que a economia deve responder a uma série de questões que mobilizam muito mais do que cálculos matemáticos ou planilhas”. (ALMEIDA, p. 104).

Por Marcos Luiz da Silva

Bacharel em Direito. Especialista em Direito Público. Mestre em Filosofia. Professor da Uespi. Advogado da União

 

Referência

Almeida, Silvio. Racismo Estrutural (Feminismos Plurais). Editora Jandaíra. Edição do Kindle.

JARDIM, Denise Fagundes; LÓPEZ, Laura Cecilia. Políticas da diversidade: (in) visibilidades, pluralidade e cidadania em uma perspectiva antropológica (p. 86). SciELO – Editora da UFRGS. Edição do Kindle

SOUSA, Jessé. Ralé brasileira. 3ª Edição. São Paulo: Contracorrente, 2018.

SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Lebooks Editora. Edição do Kindle.