Um importante veículo da “imprensa tradicional” do nosso país soltou matéria onde diz com todas as letras que nos Estados Unidos os servidores públicos “não possuem estabilidade”. Depois dizem que quem faz fake news é o cidadão comum nas redes sociais. A matéria não corresponde à realidade, e mais desinforma do que esclarece. Com base em artigo de Ricardo José Pereira Rodrigues faremos algumas considerações sobre o instituto da estabilidade, lá e cá.
Em primeiro lugar: nos EUA também tem um instituto similar à estabilidade. Lá o servidor não pode ser demitido sem processo administrativo com contraditório e ampla-defesa, o que se assemelha muito ao nosso instituto da estabilidade (não confundir com a vitaliciedade do Judiciário e do Ministério Público), se tiver sido efetivado no cargo após estágio probatório de um ano. Inclusive com direito a Advogado (direito que não temos aqui).
Com o asseguramento de contraditório e ampla-defesa. Sem falar que o Estágio probatório é de um ano. Ou seja, não muito diferente do que temos aqui. Sem falar que o estágio lá é menor, a lei garante para o servidor concursado em vias de demissão no mínimo 30 dias de aviso prévio, além de contraditório verbal ou por escrito, necessidade de evidência documental e direito a um advogado durante a tramitação do processo administrativo.
Rodrigues (1995) mostra que eles precisam se informar melhor antes de soltar um editorial desses:
No nível federal, o sistema de pessoal do Governo norte americano é regido por uma lei que data do século passado. Trata-se do Civil Service Act, conhecida também por Lei Pendleton, promulgada em janeiro de 1883. Esta legislação reorganizou o funcionalismo federal, instaurando um regime de recrutamento, promoção e carreira com base no mérito que pudesse concorrer para consolidar uma administração pública menos politizada e mais comprometida com a continuidade dos programas e ações do Governo.
Todos os funcionários civis da União encontram-se sob a tutela do Civil Service Act. Os benefícios desta lei atingem não apenas os funcionários de carreira, cujo ingresso no Serviço Público se dá por intermédio de um sistema de mérito, mas também o pessoal indicado para preencher cargos de confiança. Da legislação estão excluídos, contudo, os integrantes das forças armadas e os ocupantes de cargos eletivos (MAGALHÃES, 1995).
A lei americana, segundo Rodrigues, ainda concede várias salvaguardas processuais para o servidor processado e em vias de ser demitido. Vejamos alguns deles:
- A lei garante para o servidor concursado em vias de demissão os seguintes direitos:
- No mínimo 30 dias de aviso prévio, por escrito, com as razões específicas para a sua demissão;
- Contraditório, verbal e por escrito, dentro de 7 dias, com evidência documental;
- Direito a um advogado;
- Direito a apelar para o Conselho de Proteção do Sistema de Mérito, que concederá
- Direito de audiência ao funcionário, bem como direito a um advogado;
- Direito de apelar da decisão do Conselho no Tribunal de Recursos dos Estados Unidos, que poderá conceder novas audiências”.
Se isso não for uma estabilidade ainda mais rigorosa que a que nós temos não sei o que é. E aqui, como lá, também há possibilidade de demissão por questões de desempenho. Ou seja, o servidor público brasileiro nunca foi intocável, mas precisa ser resguardado em sua atividade.
O pior de tudo é a comparação com país estrangeiro, desconsiderando todo o histórico e o contexto nacional, em que o serviço público sempre foi usado como moeda de troca em questões eleitorais, de forma patrimonialista e fisiológica. A estabilidade é um instituto claramente republicano e tem que ser visto como tal. Aliás, em relação as hipóteses de demissão estamos muito bem servidos. O que se precisa é de regulamentação e melhor estruturação de órgãos disciplinares.
Faoro, Roberto da Matta, Sérgio Buarque, dentro outros, nos lembram do nosso profundo apego ao patrimonialismo, que juntamente com a desigualdade social e o racismo se somam formando o núcleo das nossas iniquidades e misérias. Conforma lembra Magalhães,
(….) as reflexões acima alinhadas parecem evidenciar que a cidadania brasileira não se constrói de liberdade e igualdade a partir e em prol dos indivíduos, eis que lhe permeia sempre um elemento externo, que condiciona a representação da vontade dos atores sociais, cuja gênese se aponta na família patriarcal, no estado patrimonialista e/ou nas situações relacionais (MAGALHÃES, p. 33).
Estabilidade não é privilégio, ao contrário do que tem sido vendido. Estabilidade é medida republicana, de viés moralizador, que concede independência ao servidor, sendo, portanto, medida de proteção da sociedade.
“Há, mas é preciso reduzir o tamanho do Estado para que as pessoas tenham mais liberdade! ” Esse tem sido um discurso corrente, mesmo havendo dados que demonstram que o Brasil não é um Estado grande e que não tem mais servidores que a média da OCDE. Contudo, é preciso ver que tal argumentação, pelo menos no que toca à estabilidade, é paradoxal. Na verdade, as liberdades podem ser ameaçadas quanto maior for a falta de independência dos servidores públicos. O Estado pode virar o quintal de alguém. E no Brasil isso era comum antes de 1988, e se avançou muito com o concurso público e com a estabilidade do servidor público, avanço esse que agora corre riscos, sob falsos argumentos econômicos e de racionalidade.
O fim da estabilidade, ou a sua flexibilização excessiva, põe em risco tais avanços que integram um modelo de administração pública profissional e eficiente que é o que a sociedade brasileira sempre demandou, e não a administração anacrônica, fisiológica e completamente atrelada a interesses públicos que grassava antes de 88. Assim, não há incompatibilidade alguma entre essas salvaguardas do serviço público e o modelo liberal deles. Muito pelo contrário. Se não se der garantia, o Estado pode cair na mão de uns poucos poderosos e colocar em risco todas as liberdades. Aqui já se viu muito disso, e ainda se vê.
Enfim, lamentável que uma parte da imprensa venha atuando dessa forma, mais desinformando do que esclarecendo o cidadão brasileiro, e de forma parcial. É preciso que se defenda uma imprensa livre. Isso é condição de uma democracia forte e saudável. Mas ao mesmo tempo a imprensa não pode atuar de forma irresponsável, desconsiderando a sua importância no debate público e sem preocupação com a melhor informação à população. É preciso combater a “pós-verdade”, mesmo dentro das redações de jornalões tradicionais.
Por Marcos Luiz da Silva
Professor da Uespi. Mestre em Filosofia. Especialista em Direito Público. Advogado da União.
Referências:
MAGALHÃES, André Luiz Alves de. O jeitinho brasileiro na admissão no serviço público: a história constitucional do recrutamento de servidores em concurso. São Paulo: Baraúna, 2011.
RODRIGUES, Ricardo José Pereira. Regime Jurídico do Servidor Público nos Estados Unidos. In: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/arquivos-df/pdf/510256.pdf?fbclid=IwAR1CtsmCi5MAuj86eIVOEsv-S3uZVWWhfjMkvZ39og-PXz6UaMchENzkH_E.