José dos Santos é um homem brasileiro que mora em uma favela. Ele sai as 05:00h da manhã para o trabalho, e retorna à noite, por volta de 20h. Trabalha no centro de uma cidade grande, como ambulante. Divide a sua residência com um irmão e sua família, sendo casado com dois filhos. Os dois casais dividem os dois cômodos da casa com os dois filhos. José dos Santos estudou até o quarto ano do ensino fundamental, mas consegue ler histórias para os filhos e faz cálculos com uma impressionante rapidez. Abandonou os estudos para ajudar os país na lida diária. Na pandemia, não pode parar e ficar isolado porque precisava manter a sua família, e teve o acesso negado ao auxílio do governo. José dos Santos foi acometido de covid, sendo um homem negro e portador de comorbidades, como hipertensão e diabete. José dos Santos não conseguiu sobreviver à covid.

A história de José dos Santos é a história de muitos brasileiros negros e de como são tratados pela nossa sociedade. No início da pandemia havia um certo consenso de que o vírus da covid-19 era “democrático”. Passados quatro meses, percebe-se pelos estudos e pesquisas realizadas que o principal atingido pela pandemia foram os negros e pardos, o que demonstra que a tal da “democracia” do vírus era uma falácia: o vírus não é democrático e não atinge da mesma forma a população brasileira. Pretos e pobres em geral são os mais atingidos e os que mais sofrem perdas com a covid[i]. Isso inclusive vem acontecendo também nos Estados Unidos[ii], onde 60% das mortes são de pessoas negras, mesmo que esse contingente populacional represente apenas 13% (treze por cento) da população total daquele país.

Como o objetivo deste texto é tão somente realizar uma reflexão da condição do negro em tempos de pandemia, não me aterei aos dados e informações estatísticas, que estarão mencionadas em notas no fim do texto. Mas o fato é que a população negra é que vem sendo mais atingida, por possui maior probabilidade de morrer, conforme apontam inúmeros estudos veiculados pela imprensa. Em São Paulo, por exemplo, os negros tem 85% mais chances de morrer por covid-19 do que brancos, embora sejam cerca de 43% dos hospitalizados[iii].

A que se deve isso? Os negros estão mais propensos por uma questão biológica dos que os brancos? Essa hipótese vem sendo estudada, mas não há nada de conclusivo em relação a ela. O que se percebe, contudo, é que a condição de vida dos negros tem levado a essas mortes. Os negros são a parte da população que vive em piores condições. Muitos não têm acesso à água de qualidade e esgotos. Não tem plano de saúde, o acesso a alimentação de boa qualidade e a uma dieta saudável é reduzido, e possuem muitas comorbidades, adquiridas ao longo da vida em face das condições paupérrimas de sobrevivência. Grande parte dessas pessoas não teve condições de uma educação de boa qualidade, e dificilmente chegam a um curso superior. Terminam em condições precárias de trabalho, de moradia e de cuidados com a saúde. São tratados como coisas, desconsiderados nos dados oficiais e mesmo nos cálculos de muitos economistas, que pouco levam em consideração a questão do racismo como fator de desigualdade social.

Segundo a sanitarista Karine Santana, as medidas de enfrentamento da covid-19 precisam ser equitativas, “pautadas na equidade”, e que qualquer medida diferenciada que privilegia alguns grupos sociais em detrimento de outros implicaria em “acirramento do racismo estrutural”[iv]. Segundo informa, 80% dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) são pessoas negras, e que qualquer ação deve ser pautada na ideia de interseccionalidade, onde se considera que o fator racismo atravessa as questões econômicas, políticas e sociais existentes na sociedade brasileira e termina por impor maiores restrições e piores condições de vida à população negra do país.

Segundo Santana, a população negra se situa no grupo com piores índices de condição de vida, e se submete há anos a um processo de vulnerabilidade, decorrente de uma estrutura social que negligencia as suas condições e possibilita a manutenção de uma desigualdade extrema, e que é aprofundada com a política de austeridade fiscal que se vem adotando nos últimos anos, inclusive o famigerado “teto de gastos”, conforme ressalvado pela alta comissária da ONU para Direitos Humanos Michele Bachelet[v]. Segundo Bachelet, o “Brasil precisa abandonar imediatamente políticas de autoridade mal orientadas que estão colocando em risco a vida das pessoas e aumentar os gastos para o combate à desigualdade e a pobreza exacerbada pela pandemia”[vi]. Não há como desconsiderar essa questão, sob pena de não se levar em consideração o mundo real e o contexto social em que vivemos para a construção de políticas públicas eficazes e que partam das premissas corretas do ponto de vista concreto.

Voltemos à frase: “o vírus não é democrático”. Analisando-se o que ficou escrito no parágrafo anterior, percebe-se que há um erro nessa conclusão. Na verdade, o vírus em si é democrático. O que não é democrático é o modo como vivem as pessoas que são atingidas por eles, havendo uma complicação maior na sua disseminação em populações negras e indígenas, em decorrência de fatores sociais pré-existentes, como já dito acima. Por outro lado, tem-se as pessoas que vivem em situação de conforto material e que possuem planos de saúde, tem uma qualidade de vida invejável, tiveram uma vida de opulência e riqueza. Possuem desde a infância o acesso à saúde e a uma alimentação saudável, além de lazer, atividade cultural e prática esportiva. Em geral possuem curso superior, e, portanto, seriam pessoas mais informadas sobre as precauções que devem tomar durante a vida para evitar a ocorrência de comorbidades. Têm acesso aos melhores médicos e tratamentos, geralmente em hospital privado. Do outro lado, temos uma população em sua grande maioria preta que é privada de quase tudo. Luta para sobreviver, e, portanto, não pode se dar ao luxo de ficar em casa durante uma pandemia se não tiverem acesso a uma auxilio emergencial do governo, medida da máxima importância. Em geral, não tem acesso a comida de qualidade, tampouco a uma medicina de ponta. É a parte da população que ganha os menores salários, e possuem as piores condições de moradia. Poucos chegam à universidade, e muitos estão trabalhando na informalidade, em empregos precários sem qualquer segurança ou mesmo previdência. Estão na parte de baixo da nossa pirâmide social. São fruto de uma grave desigualdade social (a pior do mundo!), aprofundada ainda mais com um racismo que permeia a nossa sociedade em todas as suas dimensões. E são as que mais morrem na pandemia.

Algumas correntes liberais (em especial os que defendem estado mínimo e outras ideias libertárias) diriam que a culpa disso tudo é de José dos Santos, que não se “esforçou” o suficiente para mudar sua vida. É o tipo de posição desconectada completamente da realidade deste país, e que se baseia tão somente em considerações de ordem formal ou teóricas, muitas vezes oriundas de autores alienígenas que nunca pisaram os pés por essas bandas. José dos Santos não é vítima da sua inércia, ou da sua incompetência ou preguiça. Ele é um trabalhador esforçado, que realiza seu trabalho de domingo a domingo. É fruto de uma estrutura social injusta e que perpetua a miséria e a pobreza, principalmente do povo negro que habita a periferia, vilas e favelas deste País.  E que precisa ser enfrentada, como bem recomenda o texto da nossa Constituição Federal, que elenca como objetivo fundamental da sociedade e do Estado Brasileiro “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (conf. art. 3º da C.F). A pergunta que fica é: quando cumpriremos esse mandamento constitucional?

É preciso mudar essa estrutura, que impede que a maior parte da população do País sai da miséria e de uma situação de precariedade no trabalho e na vida. José dos Santos é o atestado de que o “racismo estrutural” é flagrante em nosso país. E precisa ser enfrentado. Como bem ressalvou Mahatma Gandhi: “Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome”.

 

Por Marcos Luiz da Silva

Professor de Direito da Uespi. Mestre em Filosofia. Advogado da União

[i] In: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/07/15/mortes-naturais-sobem-3-vezes-mais-entre-negros-do-que-brancos-na-pandemia.htm.

[ii] In: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/reuters/2020/04/08/coronavirus-mata-mais-negros-em-estados-dos-eua-indicam-dados-preliminares.htm.

[iii] In: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/13/artigo-o-que-a-atual-pandemia-revela-sobre-o-13-de-maio-de-1888.

[iv]In:  https://nacoesunidas.org/acoes-de-enfrentamento-a-pandemia-devem-considerar-condicao-de-vida-e-saude-de-negras-e-negros-diz-sanitarista-a-onu-mulheres/

[v] https://racismoambiental.net.br/2020/04/30/onu-critica-austeridade-mal-orientada-do-governo-brasileiro-no-contexto-da-pandemia/.

[vi] Idem.