O leading case do Habeas Corpus 126292, do Supremo Tribunal Federal, cujo debate girou em torno da validade constitucional da execução provisória da pena, foi alvo de sérias críticas doutrinárias, mormente no que tange à violação do princípio constitucional da presunção de inocência.
Com efeito, uma das garantias processuais penais é justamente a de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, nos termos do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal Brasileira.
No caso português, por exemplo, o artigo 32, número 2, da Constituição prevê que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.
Cumpre referir o estudo realizado, no âmbito do Ministério Público Federal, por Luiza Frischeisen, Mônica Garcia e Fábio Gusman intitulado “Execução Provisória da Pena: Panorama nos ordenamentos nacional e estrangeiro”, no qual os autores salientam que a execução imediata da pena é admitida com variação de intensidade nos Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Portugal, Espanha e Argentina, justamente em razão da eficácia dos provimentos jurisdicionais.
Pretende-se, pois, jogar luz em torno das seguintes questões: Qual o conteúdo normativamente adequado do princípio da presunção de inocência? É possível equacionar o dilema entre garantias e eficácia no processo penal?
Na doutrina portuguesa, Reis Novais procura identificar os limites e o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, advertindo para os problemas decorrentes do decisionismo judicial e da retórica argumentativa lançada para embasar decisões de inconstitucionalidade. Defende uma concepção restritiva do conteúdo do princípio da dignidade humana, pautando-se pela vedação de instrumentalização dos indivíduos, que não devem ser tratados como objetos ou coisas, bem como em uma perspectiva de sua autonomia e responsabilidade (seres humanos como fins em si mesmos, na linha de Kant). Há, ainda, uma dimensão comunitária ou prestacional do aludido princípio, a exigir do Estado obrigações de proteção e promoção em favor dos indivíduos, em especial nas situações de vulnerabilidade social.
Reportando-se ao tema da presunção de inocência, adotando-se uma concepção restritiva, pode formular-se o seu conteúdo dirigido, precipuamente, à seara probatória, de maneira que compete ao Ministério Público a comprovação dos fatos alegados na exordial acusatória, inclusive eventuais causas justificantes ou exculpantes (MARQUES DA SILVA).
Aliás, a trave mestra do modelo acusatório consiste na “separação entre a entidade que acusa e a entidade que julga. Tal separação garante a imparcialidade do julgador” (MENDES, Paulo de Sousa. Lições de Processo Penal. Lisboa: Almedina, p. 20). Já a principal característica do modelo inquisitório reside na “concentração do poder de investigar, acusar e julgar numa única entidade. Segundo uma fórmula clássica, é o modelo do juiz-acusador. É óbvio que se a pessoa que investiga, acusa e julga for a mesma, então ao julgar já não terá a imparcialidade necessária para formar um novo juízo, pois entretanto já formou e consolidou a sua opinião durante a investigação” (MENDES, Paulo de Sousa. Op. cit., p. 22).
Nessa linha de raciocínio, o princípio da presunção de inocência, em um processo penal constitucional, de matriz preponderantemente acusatória, como no caso brasileiro, que adota um sistema misto, não é uma garantia processual absoluta, devendo ser interpretada à luz do princípio da duração razoável do processo. Entendimento diverso, com o devido acatamento, implicaria na “eternização” da demanda processual penal – justiça penal de quatro instâncias -, em prejuízo da eficácia da persecução penal estatal, de modo a se instituir um garantismo processual exagerado e, como tal, divorciado das expectativas normativas legítimas decorrentes do Estado Democrático de Direito.
Basta um passar d’olhos, por exemplo, em torno da situação penitenciária brasileira, para ver que os réus condenados, em regra, não têm seus recursos sequer admitidos para análise no âmbito do Supremo Tribunal Federal, quadro que gera o risco de um “processo penal de classes” (Schüneman), em detrimento do princípio da igualdade material.
Dito de outro modo, as relações dilemáticas e conflituosas entre garantias e eficácia no processo penal reclamam uma hermenêutica que, sem a pretensão de definitividade ou de conter a última palavra (Gadamer), busque o necessário “estranhamento” na experiência do Direito Estrangeiro, à luz das ideias de romance em cadeia (Dworkin) e de interconstitucionalidade (Canotilho), em um autêntico “diálogo de Cortes”, para além do pragmatismo político-jurídico que foi utilizado na fundamentação do Supremo Tribunal Federal. Meras razões utilitaristas ou consequencialistas não se sobrepõem a argumentos de princípio, pautados na coerência e na integridade do Direito (Dworkin).
A ideia do “romance em cadeia” associada à coerência narrativa brota como elemento fundamental da Teoria Hermenêutica da Responsabilidade, inserindo o intérprete na cadeia da interpretação em prol do reconhecimento da história institucional do Direito, a partir das dimensões do ajuste e da finalidade, além do limite interpretativo decorrente da concepção da integridade do Direito. Isso implica em rejeitar apreciações pautadas no subjetivismo decisório, à luz de um dever de responsabilidade política (Dworkin).
Cada juiz é como um “romancista na corrente. (…) Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção”. (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 236 e ss).
O “romance em cadeia” está vinculado à perspectiva interconstitucional, no sentido defendido por Canotilho, de modo que a Constituição não é um empreendimento político-jurídico isolado no contexto mundial, razão pela qual o diálogo de Cortes é um valioso recurso hermenêutico para a construção de uma resposta adequada ou válida.
O conteúdo normativo do princípio da presunção de inocência compete, sobretudo, ao legislador infraconstitucional. O artigo 283 do Código de Processo Penal, inserido pela Lei n.º 12.403/2011, prevê que não haverá prisão senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, salvo a prisão de natureza cautelar, situação não enfrentada pelo STF. Sustenta-se a existência de um conflito de regras no diploma processual penal, pois o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo (artigo 637 do CPP), razão pela qual a questão deve ser analisada na perspectiva da validade da regra em matéria recursal. Não se pode olvidar, contudo, que a temática pode ser alvo de novos questionamentos junto à Corte Suprema, seja no âmbito da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), ou na seara da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
Por conseguinte, tanto o garantismo processual unilateral como o eficientismo estão em rota de colisão com a história institucional dos princípios processuais penais, razão pela qual o “romance em cadeia” e a integridade do Direito devem embasar a empreitada interpretativa como exigência da responsabilidade política do intérprete.
Por Vinicius Lima
Graduado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2002) e Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa (2010). Doutor em Direito Público pela Unisinos (2015). Promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Ex-Professor da UNISC, Campus de Capão da Canoa (2013). Ex-Professor da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP), nas disciplinas de Processo Penal II e III. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal da FMP. Professor do Curso de Direito da ULBRA, Campus Torres/RS. Autor dos livros Lavagem de Dinheiro & Ações Neutras: Critérios de Imputação Penal Legítima (Curitiba: Juruá Editora, 2014), Teoria Hermenêutica da Responsabilidade Decisória: Direitos sociais entre Ativismo Judicial e Decisão Jurídica Democrática (Curitiba: Juruá Editora, 2016) e Decisão Judicial e Democracia: Por uma Ética da Responsabilidade no Direito Brasileiro (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017).