Por Wilson Seraine da Silva Neto.
A expoente figura norte-americana Abraham Lincoln conceituava a democracia como “governo do povo, pelo povo e para o povo”. A utilização do termo governo limita a definição de democracia, no qual se exprime, em verdade, como um “regime, forma de vida e, principalmente, processo”, de modo em que se revela como um “regime político em que o poder repousa na vontade do povo (..) para a realização dos direitos fundamentais do homem”[1].
Entretanto, a expressão acunhada por Lincoln serve de muito para explicar a democracia, de modo que os termos a esta designada explica como se opera essa forma de regime político. O termo “do povo” proclama este como o titular de todo o poder, firmando o princípio da soberania popular como o princípio basilar de todo regime democrático, pregoando a máxima “todo o poder emana do povo”, previsto no art. 1º, parágrafo único da Constituição Federal de 1988. “Pelo povo” se relaciona com o “consentimento popular”, de modo que a vontade popular fundamenta todo governo democrático, no qual “se baseia na adesão livre e voluntária do povo à autoridade, como base da legitimidade do exercício do poder, que se efetiva pela técnica da representação política”[2]. Por fim, “para o povo” expressa a busca e a concretização pelo governo das melhores políticas em favor da sociedade, “garantindo-a a máxima segurança e bem-estar”[3], de modo que se comunica com o conceito de república, na qual tem como escopo realizar o interesse geral e o bem comum.
Ademais, utilizando-se da explicação realizada por José Afonso da Silva, a democracia possui dois princípios fundamentais ou primários, que lhe dão a essência conceitual: o da soberania popular; e a da participação, direta ou indireta, ou por meio de representação do povo no poder. Afirma, ainda, que a igualdade e liberdade não são princípio, mas valores democráticos, de forma que a democracia é um instrumento de sua realização prática[4].
Contudo, a democracia se exprime mais do que um regime político, mas, também, um direito. O direito à democracia compõe, concomitantemente ao direito à informação e ao direito ao pluralismo, os direitos fundamentais de quarta geração, de modo que “deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência”[5].
Do mesmo modo, os direitos fundamentais são essenciais para a realização do princípio democrático que norteia um governo, uma vez que “os direitos fundamentais, como direitos subjectivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício do poder antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípios maioritário, publicidade crítica, direito eleitoral)”[6]
Por outro lado, a informação surge como uma ferramenta primordial para a persecução de liberdade para todos os indivíduos, de modo que possam exercer o seu poder, soberano e único, na condução de um país, seja elegendo os atores políticos que os representarão, seja exigindo uma nova constituição, já que o titular do poder constituinte originário é o povo, ou seja buscando a responsabilização dos políticos que feriram a administração pública.
Logo, a transparência e a publicidade são elementos que protegem e permitem a finalidade da democracia, qual seja, garantir ao povo, aos indivíduos, o exercício do seu poder de votar, escolher, exigir e reclamar, já que a “democracia vive da publicidade do processo político”[7]. Na obra Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundersrepublik Deutschland, o jurista alemão Konrad Hesse afirma que a “democracia é, segundo seu princípio fundamental, um assunto de cidadãos emancipados, informados, não de uma massa ignorante, apática, dirigida apenas por emoções e desejos irracionais que, por governantes bem-intencionados ou mal-intencionados, sobre a questão do seu próprio destino, é deixada na obscuridade”[8].
Portanto, a não transparência de um governo e/ou a subtração da publicidade dos seus atos atacam frontalmente a democracia de um país, em uma tentativa ou de dissimular as atividades do governo frente a sociedade, de modo que este não fique a par dos acontecimentos, logo seja incapaz de reagir ou protestar por eventuais equívocos cometidos, ou é uma tentativa de fragilizar e desacreditar a imprensa que necessita dos dados do poder público para transmitir a informação, ou os dois.
Nesse sentido, a última decisão do governo brasileiro, qual seja, de restringir a divulgação de dados sobre o impacto da pandemia do vírus SARS-CoV-2 que assola todo o mundo, de modo a não mais informar o total de mortes e nem o total de casos[9], demonstra uma atitude temerária sob o ponto de vista democrático. A restrição de dados que importa a toda a comunidade e é imprescindível para o exercício da atividade do jornalismo vai de encontra aos preceitos constitucionais esculpidos em nossa Constituição Federal de 1988, conforme o seu art. 37, caput[10], no qual elenca a publicidade como um dos princípios fundamentais que a administração pública deve atender, bem como atenta contra o direito e a garantia individual de acesso à informação dos órgãos do poder público (art. 5º, XXXIII)[11].
A informação, seja perpassada pelo poder público através da publicidade dos seus atos ou pela imprensa através de investigação ou transmissão de notícias, é primordial para a democracia, tanto para a sua manutenção quanto para o seu amadurecimento. O acesso à informação e o direito de manifestar-se sobre ela é necessário para a consubstanciação da liberdade dos indivíduos, de modo a fortalecer os seus direitos políticos e permitir uma participação mais ativa no cenário político do país.
A ausência de informação é limitadora do conhecimento, uma vez que esta depende daquela – porém não se confunde -, de modo que a opinião formulada por um sujeito “será incorreta, por se basear numa suposição, ou numa falsa informação”[12]. Portanto, a mitigação da informação prejudica o exercício da democracia, bem como a efetivação dos princípios democráticos, uma vez que a soberania popular e a participação política do povo ficam restringidas, já que a sociedade estará exercendo seu poder político em meio a escuridão com ausência da luminosidade da razão.
Por coincidência, a data da publicação desse curto artigo é no dia em que se comemora o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa (7 de junho). A imprensa, no exercício do seu ofício, é essencial para concretizar o acesso à informação no qual a Constituição brasileira garante como direito fundamental de todos os cidadãos[13]. O jornalismo livre deve ser zelado e sempre respeitado pelos ocupantes dos cargos políticos, uma vez que ele se traduz como uma instituição fundamental para a manutenção da democracia.
Contudo, falar de liberdade de imprensa é falar também de John Milton. Escritor inglês do século XVII, mais conhecido por seu poema épico Paraíso Perdido, é o autor de um panfleto escrito em 1644 sob o título Areopagítica. Este opúsculo é uma das primeiras manifestações que se tem conhecimento sobre a defesa da liberdade de imprensa, de modo em que se denuncia a inutilidade da censura.
Após a fuga de sua esposa para a casa dos pais e a inutilidade das cartas enviadas a ela, John Milton compôs um texto sobre o direito ao divórcio, titulado The Doctrine and Discipline of Divorce (1643). Entretanto, o Parlamento Inglês censurou essa obra, sob argumento de que esta afrontava a religião e o governo, sendo considerada perversa. Assim, irresignado com tal ocorrido, John Milton escreveu o seu “discurso pela liberdade de imprensa ao Parlamento da Inglaterra”, ou, Areopagítica, de modo a condenar a censura prévia, em nome da razão e liberdade.
A censura para John Milton desgraçaria toda as pessoas da Nação, de maneira que “desconfiarmos dela a ponto de não podermos deixar que leiam um simples panfleto inglês corresponde a passar-lhes um atestado de ignomínia: serão pessoas levianas, imorais, sem formação sólida, doentes e debilitadas, num estado de tão pouca fé e fraco discernimento, que não seriam capazes de engolir o que quer que fosse a não ser pelo tubo de um censor”[14].
Ademais, a imprensa deve ser livre para publicar e informar o que achar necessário, logicamente amparada na verdade e na função pública de noticiar, de modo que cabe também aos indivíduos acolher ou não a notícia, acreditar ou não. Porém o que não pode é haver a ruptura da transmissão do fato ao indivíduo. Milton, acerca disso, exclama: “Quando Deus lhe deu a razão, deu com ela a liberdade de escolher, pois razão é isso – escolha”[15].
Dessa forma, é sempre oportuno revisitar John Milton e a Areopagítica, de modo a sempre fazer-nos lembrar a importância de uma imprensa livre, que informa a realidade e noticia o que os representantes do povo estão realizando em prol de todos.
Concluo esse texto afirmando que a maior égide da democracia, isto é, a proteção de um Estado democrático é a informação, de modo que deve ser irrestrita o seu acesso (conforme fixa o art. 220 da CF/88)[16], devendo-se o governo sempre atuar pautado pela transparência e clareza e jamais restringir o trabalho do jornalismo que possui o escopo de informar, noticiar, expor ao povo do país a realidade no qual se vive. Já que um povo consciente, protetor de seus direitos e atento à política, aptos a protestar e se insurgir, não ocorre sem informação e transparência.
Por fim, peço a máxima licença para citar uma passagem do já citado livro Areopagítica, de John Milton:
“And yet on the other hand, unless warinesse be us’d, as good almost kill a Man as kill a good Book; who kills a Man kills a reasonable creature, Gods image; but hee who destroyes a good Booke, kills reason it selfe, kills the Image of God as it were in the eyes.”[17]
(E, por outro lado, vale refletir que matar um homem pode ser até melhor que matar um bom livro. Quem mata um homem mata uma criatura racional, feita à imagem de Deus; mas aquele que destrói um bom livro mata a própria razão, mata a imagem de Deus como que no olho)
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[1] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 42 ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 128/134.
[2] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 42 ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 137.
[3] Idem
[4] Ibid. p. 133-134
[5] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 34 ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 586
[6] CANOTILHO, J. J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 291.
[7] HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundersrepublik Deutschland: Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 275.
[8] Idem.
[9] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/governo-deixa-de-informar-total-de-mortes-e-casos-de-covid-19-bolsonaro-diz-que-e-melhor-para-o-brasil.shtml
[10] A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
[11] Art. 5º: XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
[12] NOGUEIRA, Octaciano. Vocabulário da Política. Brasília: Senado Federal, 2010. p. 217-218.
[13] Art. 5º: XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
[14] MILTON, John. Areopagítica: Discurso pela liberdade de Imprensa ao Parlamento da Inglaterra. Tradução: Raul de Sã Barbosa. Rio de Janeiro: TopBooks, 199. p. 131
[15] Ibid. p. 109
[16] Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
[17] Ibid. p. 60-63