I – INTRODUÇÃO

O ano de 2020 surpreendeu a todos com a pandemia de COVID – 19, obrigou o mundo inteiro a entrar de quarentena e fechar comércios, algumas indústrias, bares e restaurantes e outros setores da economia em virtude da pandemia. Durante esse período, constantemente foi noticiado a queda de arrecadação da União e demais entes federados[1][2] e de outro lado, o aumento de gastos principalmente com saúde, auxílio financeiro a Estados e Municípios e programas de distribuição de renda para população para que conseguissem sobreviver ao período pandêmico.

Ainda no começo do período de isolamento e diante dos casos crescentes de coronavírus, viu-se a necessidade de o Estado desempenhar novas funções além daquelas previstas no artigo 174 da Constituição Federal, como funções de investidor, protetor e estabilizador. Ocorre que crise sanitária rapidamente provocou efeitos nefastos, com proporções e características inéditas, na economia brasileira que vinha cambaleando desde o ano 2015 e diante do número de desempregos gerados, surge o debate sobre redinamizar a economia criando renda e emprego com aumento nos gastos públicos.

Para redinamizar a economia com aumento nos gastos públicos, é necessário que estes tenham efeitos multiplicadores, ou seja, a cada real que o Estado paga, o Produto Interno Bruto (PIB) deve aumentar em mais de um real à medida que a renda gerada seja consumida. Porém, existe uma pedra no caminho da atuação do Estado aprovada no ano de 2016 que se chama: teto de gastos públicos ou EC 95/2016.

Aprovada sobre o discurso de reduzir os gastos do Estado e controlar o déficit público, a EC 95/2016 estabelece um novo regime fiscal com duração de vinte anos, começando a partir de 2017, onde os gastos primários do governo ficam vinculados ao orçamento do ano anterior reajustados pela inflação acumulada dos últimos doze meses. Em outras palavras, temos um teto que impede o aumento real dos gastos públicos, que é incompatível com o modelo de estado de bem-estar social adotado pela Constituição Federal de 1988 e que diante da crise provocada pelo coronavírus mostra-se na contramão de atuação de um estado com função estabilizadora.

II – AUSTERIDADE FISCAL: ANÁLISE DAS EC 95/2016, EC 106/2020 e EC 109/2021 E OS REFLEXOS NA PANDEMIA DE COVID-19

No Brasil sempre houve um intenso debate sobre os resultados fiscais e trajetória da dívida pública. Giambiagi (2008), fez uma análise da dívida pública realizando um recorte temporal de 1992 a 2008 e observou que nesse período os gastos primários do governo cresceram em proporção maior do que crescimento da economia. Em contrapartida a Dívida Liquida do Setor Público (DLSP) em proporção ao PIB (DLSP/PIB) se mostrou decrescente, em virtude do crescimento do superávit primário.

A partir de 2011 os superávits primários foram reduzindo, até chegar em 2013 ao patamar mínimo e se tornarem deficitários a partir do ano de 2014. O déficit primário contribui para o aumento da DLSP e somado a isso houve diminuição do ritmo de crescimento nominal do PIB, fazendo com que a proporção DLSP/PIB trouxesse à tona o debate sobre a solvência do setor público (SARAIVA; GOMES; PEREIRA; BEZERRA; 2017).

Importante ressaltar que em 2014 o Brasil entrou em cenário de crise econômica devido a choques na oferta e demanda devido a adoção de políticas conhecida como Nova Matriz Econômica (NME) que reduziu a produtividade brasileira, conforme observa Filho (2017):

A crise resulta de um conjunto de choques de oferta e de demanda. Primeiramente, o conjunto de políticas adotadas a partir de 2011/2012, conhecido como Nova Matriz Econômica (MNE), reduziu a produtividade da economia brasileira e, com isso, o produto potencial. Mais, esse choque de oferta possui efeitos duradouros devido à alocação de investimentos de longa recuperação em setores pouco produtivos.

Os choques de demanda estão divididos em três grupos. O primeiro engloba o esgotamento da NME a partir do final de 2014. O segundo choque seria a crise de sustentabilidade da dívida pública doméstica de 2015. O terceiro foi a correção do populismo tarifário que demandou uma política monetária contracionista para o controle inflacionário após a perda de credibilidade do Banco Central. Além disso, a consolidação fiscal tentada no ano de 2015 possui impacto menor sobre essa recessão devido à sua baixa magnitude e duração.

Ainda segundo Filho (2017) a NME acabou gerando uma forte intervenção estatal principalmente em políticas monetárias com a redução da taxa de juros básica no ano de 2012 quando o Brasil estava em momento de aceleração da inflação e políticas fiscais na tentativa de criar setores estratégicos para receber subsídios e aumento do investimento público para gerar crescimento econômico, que não ocorreu.

Ocorre que essa intervenção econômica gerou a deterioração das contas públicas, fazendo com que os déficits primários, a partir de 2014, fossem crescentes e a credibilidade do país fossem reduzidas, o que fez com que taxa de juros real fosse elevada ocasionando a desaceleração da economia brasileira.

Porém, colocar déficit público como algo ruim é um discurso perigoso e que foi adotado pelo governo Temer para justificar a aprovação da EC 95/2016. O perigo reside no fato de que a sociedade brasileira optou em 1988 por um estado de bem-estar social e a construção de toda essa estrutura que garante educação, saúde, segurança pública e outras benesses requer investimento (gasto) público.

Assim, um país que possui déficit público não teve, necessariamente, uma má administração. Países que investem em infraestrutura como vinha ocorrendo com a criação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a NME, acumulam déficit em virtude de políticas desenvolvimentistas que vão de encontro ao tripé neoliberal de política fiscal, qual seja: superávit primário, meta inflacionária e câmbio flutuante (MARIANO, 2017).

Foi nesse cenário que a EC 95/2016 foi aprovada onde as despesas públicas são limitadas à inflação do ano anterior, ou seja, há apenas aumentos nominais. A questão central, segundo Mariano (2017) é que no caso brasileiro, não é permitido que haja aumento das despesas reais e totais nem mesmo se a economia estiver bem e possui validade por 20 anos.

Com a pandemia, o cenário econômico modificou completamente e trouxe consigo perda de renda e empregos. Assim, o Estado passou a ter o papel de estimular a economia por meio de uma expansão de gastos públicos e, estando com os gastos limitados a um teto a atuação do Estado será ineficiente não havendo espaço para políticas redistributivas da renda, provocando conflitos pela busca de investimento em itens não obrigatórios do orçamento público.

Nesse momento, em que os investimentos privados são tímidos ou quase inexistentes para inovações tecnológicas e geração de emprego e, em que há aumento demanda por serviços públicos, a EC 95/2016 apresenta-se como uma figura de agravamento ou, pelo menos, prolongamento dos efeitos da crise do coronavírus.

Como forma de desvio a essa pedra que permanecerá no meio do caminho até 2037, a câmara dos deputados fez a PEC 10/2020 ou PEC do Orçamento de Guerra que institui regime extraordinário fiscal e financeiro dando maior flexibilidade ao governo para realizar gastos e descumprir a EC 95/2016. A PEC 10/2020 foi aprovada e promulgada, tornando-se a EC 106/2020 e, teve a sua importância no período pandêmico que viveu o Brasil, porém além de não resolver os problemas que serão causados a longo prazo pela EC 106/2020, teve validade somente enquanto durou o decreto aprovado pelo Congresso Nacional que reconhece estado de calamidade pública.

A EC 106/2020 aprovada no cenário de calamidade pública instituiu um regime fiscal, financeiro e trabalhista diferenciado para o período em que se vivia. A questão é que segundo Santos e Costa (2021) o problema dessa Emenda Constitucional é que ela permite transações financeiras que não possuem vínculo com a pandemia e que aumentam o endividamento público. De forma resumida a EC 106/2020 remunera melhor os investidores, através do aumento dos juros, sem que estes gerem qualquer emprego ou aumentem a capacidade produtiva, em contrapartida aumentam-se os cortes de gastos impactos em políticas públicas e sociais.

Dessa forma segundo dados da Auditoria Cidadã a dívida pública alcançou 89,2% do PIB, a questão central é como essa dívida está distribuída. Cerca de R$ 1,38 trilhão foram utilizados para pagamento de juros e amortizações, o que favorecem grandes bancos e investidores nacionais. Ainda como reflexo da política de austeridade iniciada com o teto de gastos, temos em 2020 a redução dos gastos com Educação em -6,76%, um aumento de aporte financeiros nas rubricas de transferências para Estados e Municípios e Saúde, porém o maior aumento nominal pertence a rubrica de Juros e Amortização da Dívida que cresceu 33,04%.

A questão central é que, conforme Mariano (2017) a EC 95/2016 restringe o aumento de gastos com a superestrutura estatal (manutenção do Estado e prestação de serviços) e deixa de fora gasto com a dívida pública e a flexibilização dessa Emenda Constitucional para gastos urgentes é ineficaz para reparar uma insuficiência histórica de investimentos. Somado a isso, têm-se a EC 106/2020 que segundo Santos e Costa (2021) inclui privilégio aos rentistas permitindo a emissão novos títulos, realizando o pagamento de juros, suspendendo o artigo 167, III da Constituição Federal e permitindo que o Banco Central atue como agente de mercado de balcão e adquira títulos podres dos bancos, fazendo crescer a dívida pública sem qualquer contrapartida.

Por fim, em relação a essa questão da dívida pública e seu crescimento desenfreado, em 2021 foi aprovada da EC 109/2021 que estabelece regras para pagamento do auxílio brasil e alguns ajustes fiscais. Dentre as medidas adotadas chama atenção a limitação do crescimento das despesas obrigatórias em teto abaixo da inflação, que reflete nas despesas não obrigatórias, diminuindo os gastos com infraestrutura, pesquisa e políticas públicas e sociais, ou seja, o Estado brasileiro está comprometido apenas com o desenvolvimento do mercado financeiro, deixando de lado medidas que atendam a população em geral através do favorecimento de políticas públicas.

III – CONCLUSÃO

A emenda constitucional do teto de gastos busca alcançar o equilíbrio fiscal através do corte de gastos, adotando a teoria econômica do mainstream e colocando o país em um estado de exceção econômica, porém o que observou-se com a pandemia do coronavírus, é que EC 95/2016 acabou sabotando a constituição de 1988, principalmente em relação a garantia de direitos sociais.

Aparentemente o país acreditou na falácia de investimentos privados em todas as áreas, quando na verdade, algumas áreas necessariamente precisam do investimento (gasto) do Estado como infraestrutura de transporte e energias por serem serviços demasiadamente onerosos.

Observa-se que o brasil possuía e ainda possui alternativas à limitação dos gastos públicos como uma reforma na tributação brasileira criando um sistema mais progressivo, fiscalização do setor financeiro contendo os seus excessos, endurecendo as leis de concorrência e tornando o mercado mais competitivo e a criação de uma agenda que gere crescimento com base em investimento público.

Porém, ao contrário de medidas voltadas para atender direito constitucionais e reduzir as desigualdades, têm-se aprovado Emendas Constitucionais que favorecem o mercado financeiro através do endividamento da população brasileira com a socialização dos custos e subordinação de investimento sociais à questões econômicas, estando o Brasil aquém na implementação de políticas redistributivas.

Por Maria Elvina Lages Veras Barbosa

Advogada, formada pelo Instituto Professor Camillo Filho (ICF – PI), pós-graduada em direito constitucional e administrativo pela Escola do Legislativo Piauiense, Mestranda em Economia do Setor Público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP – DF).

[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-06/pandemia-faz-arrecadacao-cair-329-em-maio-fechando-em-r-774-bi

[2] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-05/arrecadacao-cai-28-9-em-abril-e-fica-em-101-1-bilhoes

 

REFERÊNCIAS

AUDITORIA CIDADA DA DIVIDA. Gastos com a dívida  pública  cresceram  33% em 2020. Brasília. 2020. Disponível em https://auditoriacidada.org.br/conteudo/gastos-com-a-divida-publica-cresceram-33-em-2020/

FILHO, Fernando H. B. A crise econômica de 2014/2017. Saídas para crise econômica. v. 31. Rio de Janeiro. 2017. Disponível em https://www.scielo.br/j/ea/a/BD4Nt6NXVr9y4v8tqZLJnDt/?lang=pt#

GIAMBIAGI. Fábio. 18 anos de política fiscal no Brasil: 1991/2008. Economia Aplicada. v. 12, n. 4. São Paulo. 2008. Disponível em https://www.scielo.br/j/ecoa/a/Hy4syVhLjGG4CnFDCjQRpnD/abstract/?lang=pt

MARIANO, Cynara M. Emenda constitucional 95/2016 e o teto dos gastos públicos: Brasil de volta ao estado de exceção econômico e ao capitalismo do desastre. Revista de Investigações Constitucionais. v. 4, n. 1. Curitiba. 2017. Disponível em https://www.scielo.br/j/rinc/a/wJb3fZFMmZh65KfmrcWkDrp/abstract/?lang=pt#

SIQUEIRA SANTOS, C.; ARAÚJO DA COSTA, J. B. AS EMENDAS CONSTITUCIONAIS 95/2016, 106/2020 E 109/2021: Inter- relações com o endividamento público e as políticas sociais. Revista Inter-Legere, v. 4, n. 31, p. c25685, 23 jun. 2021. Disponível em https://periodicos.ufrn.br/interlegere/article/view/25685

SOUSA, Assuero M; GOMES, José W. F; PEREIRA, Ricardo A. C; BEZERRA, Arley R. Reformas fiscais no Brasil: uma análise da EC 95/2016. Revistas Encontros Universitários da UFC. v.3, n. 1. Ceará. 2018. Disponível em < http://www.periodicos.ufc.br/eu/article/view/35122>