A água, como todos sabem, é um recurso importantíssimo para todas as vidas existentes, ou melhor, é um elemento imprescindível. Podemos afirmar, com toda certeza, que sem ela não existiria o mundo tal qual o conhecemos, sendo bem essencial à existência humana, e, portanto, faz-se necessária a regulamentação de seu uso e exploração, com vistas a preservar este recurso essencial.

Existe, no contexto atual, uma grave crise de recursos hídricos. É notória a escassez da água em vários países e localidades, basta olhar para certos continentes, como a África, para perceber tal fato, tendo em vista que o mesmo vivencia déficit hídrico, causador da subnutrição e mortes. Vale ressaltar que o Brasil, de modo geral, possui abundância relativa, porém distribuída de maneira desigual, evidenciando uma má gestão dos recursos disponíveis, levando em conta dados da ONU: “Com cerca de 3% da população mundial, possui por volta de 12% da água potável superficial do planeta, cuja vazão total de seus rios alcança 180 mil m3 por segundo” (CONTI; SCHROEDER, 2013).

Em virtude dessa crise, se fala bastante nos dias atuais em desenvolvimento sustentável, o qual se caracteriza pela capacidade da sociedade de produzir recursos e sanar suas necessidades sem comprometer a subsistência das futuras gerações, ou seja, ter responsabilidade ambiental.

No Brasil, ainda falta, na prática, ações com vistas a preservar os recursos hídricos, promover o desenvolvimento sustentável, fiscalizar com mais rigor seu uso e, acima de tudo, respeitar o direito fundamental de acesso à água potável. A própria ONU (organização das nações unidas) ainda não regulamenta com vigor o direito à água, tendo em vista que a mesma reconhece a água como portadora de valor econômico, mas, de maneira tímida, a trata como direito fundamental, sem nem mesmo estipular documentos de valor jurídico que possam ser incorporados por instituições mundiais, como o Banco Mundial, FMI, OMC e BIRD (BARBOSA, 2011).

Recentemente aprovou-se, portanto, a Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, alterando de forma profunda o anterior marco legal do saneamento básico (Lei n. 11.445, de 05 de janeiro de 2007), alterações essas que modificaram o regime jurídico da gestão das águas e outras questões relativas a saneamento básico no Brasil. Em meio aos debates que surgiram nos primeiros dias de aprovação do novo marco legal, um dos questionamentos mais feitos na esfera pública é se teria havido uma “privatização” da exploração da água, a qual, na verdade tem relação com a possibilidade prevista na lei de ampla competição entre empresas públicas e privadas pelos contratos de concessão da execução dos serviços de saneamento público. No marco legal anterior a preferência para a contratação recaia sobre empresas públicas, não havendo, portanto, a previsão de ampla concorrência em igualdade de condições com outras empresas. As empresas públicas, muitas delas sucateadas e sem apoio algum para a sua reestruturação, vão ter que competir em igualdade de condições com o capital privado na disputa desse mercado singular e único: o monopólio na exploração e distribuição de águas e esgotos.

Tal polêmica, no entanto, se deu alguns nichos específicos do meio acadêmico e das redes sociais, e somente agora, depois da aprovação e publicação do novo marco legal. Não houve, antes disso, um debate amplo e aberto sobre esse projeto. A sociedade brasileira efetivamente não participou. O que vislumbramos foi uma quase total ausência de debate público sobre o tema, diante da ausência de foros específicos para tratar do tema durante a sua tramitação no Congresso Nacional, como audiências públicas ou mesmo um plebiscito ou referendo, que foram realizados em alguns países que também aprovaram regulações similares. E principalmente: a lei teve sua tramitação concluída durante a pandemia, quando não é possível à população acompanhar pessoalmente os debates que se dão no âmbito do Congresso Nacional e de suas comissões internas. Não houve debate amplo e plural sobre o tema, é a conclusão que se chega.

Há de se ressalvar que a ausência de um debate e de razões e justificativas implica, para alguns teóricos, em deliberação arbitrária, e que menoscaba a legitimidade democrática. Democracia, na concepção de Rainer Forst, por exemplo, não se limite ao voto em determinado candidato, mas necessita de justificação das decisões, de forma pública e plural. Para ele, a arbitrariedade pode ser definida como “uma dominação sem razão”, ou seja, insuficientemente justificada, de modo que uma ordem justa é aquela onde as limitações à liberdade de todos se dá a partir do consentimento geral e da justificação racional das deliberações. Eis o princípio da justificação universal e recíproca, segundo o “qual toda reivindicação de bens, direitos ou liberdades tem de ser fundamentada de modo recíproco e universal” (FORST, p. 51).

É importante ressalvar que o Direito ambiental é um ramo autônomo do direito e, logicamente, possui princípios e regras próprios, os quais são indispensáveis ao alcance de seu objetivo: proteção do meio ambiente, dentre os quais e impõe do meio ambiente ecologicamente equilibrado, conforme previsto no artigo 225 da CF/88, o qual descreve que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1988)

Ao se analisar tal princípio, fica evidente que tanto o poder público quanto a esfera privada têm o dever de preservar o meio ambiente, pensando até mesmo nas futuras gerações.  Têm-se aí o princípio do acesso equitativo aos recursos naturais, o qual defende o direito de acesso isonômico a tais recursos, de forma que deve haver razoabilidade e responsabilidade em sua fruição, e, com isso, atender às necessidades e anseios da sociedade. Trata-se de norma principiológica importantíssima no contexto atual da exploração desse recurso natural que é a água, pois, como sabemos, é um recurso finito e limitado se não utilizado de maneira responsável (quebrando o ciclo de renovação da água), logo, é necessário atuar com racionalidade em relação ao seu uso.

Ora, em face disso é preciso que haja controle social na execução dos serviços de águas e esgotos, assim como em toda e qualquer política pública relacionada ao meio-ambiente. Segundo a CF/88 todas as pessoas possuem o direito de informação, pois é necessário que a sociedade possa obter informações do poder público, e, para isso, deve haver o máximo de transparência, até para que o cidadão possa fiscalizar os atos praticados por governantes e instituições do governo, logo, o mesmo pode requerer dos órgãos públicos ambientais as devidas informações, independentemente da demonstração de interesse específico (AMADO, 2019).

Por conseguinte, o princípio da participação “decorre do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e do regime jurídico do ambiente como bem de uso comum do povo, impondo a toda a sociedade o dever de atuar na sua defesa” (THOMÉ, 2019, p. 77), ou seja, a iniciativa popular, o debate público e a participação efetiva da população nos procedimentos legislativos são alguns dos instrumentos importantes na proteção ao meio ambiente e decorrem do princípio mencionado. Por exemplo, o debate público a respeito do novo Marco Legal do Saneamento Básico é uma maneira de corrigir possíveis violações, até mesmo a princípios ambientais, que a nova lei possua, o que atenderia, por óbvio, ao princípio da justificação recíproca e universal de Forst, citado alhures.

Como consequência disso é necessário que se faça a educação da sociedade para a defesa do meio ambiente, assim como, e como condição disso, que se dê a informação necessária para que as pessoas possam exercer a sua cidadania e praticar o controle social das políticas públicas de meio ambiente. O primeiro quer aumentar a eficácia da proteção ao meio ambiente através da sociedade, pois educar a população acerca dos benefícios de um meio ambiente equilibrado e os riscos de exacerbar o seu uso é imprescindível para que tenhamos uma sociedade consciente do que deve ser feito e o que ela ganha ao seguir a legislação ambiental, de forma que a repressão à violação legal seja a menor possível e haja uma maior efetividade da função preventiva da norma, pois o tempo para reparar um dano ao meio ambiente costuma ser bem maior que o tempo levado para lesá-lo.

Por certo, nas redes sociais e em diversos sites jurídicos, até mesmo do governo federal, já se têm bastante informação acerca das mudanças provocadas pelo marco legal do saneamento básico, e algumas modificações já foram objeto de acalorados debates entre especialistas, como, por exemplo, o já citado dispositivo que altera a forma de contratação das empresas concessionárias de serviços públicos de águas e esgotos. Uma preocupação que tem sido apontada por alguns críticos do novo marco legal é a de que a sociedade pode se deparar com contas mais caras e o abandono da periferia, tendo em vista que não trariam lucro às empresas, e, mesmo que elas consigam atender essas regiões, existe a possibilidade de aumento excessivo das tarifas como forma de compensar o investimento forte em cidades com baixa infraestrutura, aumentando ainda mais o peso sobre a classe média, já bastante afetada com a carga tributária. Essas razões, contudo, não foram devidamente explicitadas e debatidas, tampouco o fato de que várias cidades ao redor do mundo já passaram pelo processo de reestatização de empresas prestadoras de serviços de saneamento básico (cerca de 900 reestatizações foram feitas em países capitalistas, como EUA e Alemanha, em serviços essenciais, como por exemplo, a distribuição de água, energia e coleta de lixo).

É possível que o “novo marco legal do saneamento” apresente formulações avançadas e que possam atender o interesse público, principalmente para o atendimento da meta de universalidade na prestação desse serviço. É possível, no entanto, que tenha também outras disposições que eventualmente possam causar prejuízos ao interesse público. Mas como aferir isso se o debate se deu de forma superficial e em plena pandemia?

Em conclusão: é preciso que esse instrumento seja pensado como bem público essencial, e não como algo que pode ser simplesmente negociado no mercado sem qualquer preocupação maior com o interesse da sociedade como um todo. Um margo legal não pode abandonar as premissas maiores do direito ambiental, da universalidade, da saúde e da qualidade da água, e para isso é preciso que hajam mecanismos de participação social que permitam um maior controle da sociedade sobre o manejo desse bem natural. No presente caso, o que se verificou foi um debate fechado, no âmbito interno do congresso nacional e de alguns especialistas, não tendo a sociedade brasileira participado efetivamente do debate. Em tema de tamanha relevância, não se pode deixar de ouvir o principal interessado.

 

Por Marcos Luiz da Silva

Professor da Uespi. Mestre em Filosofia. Advogado da União

E Marcos Luiz da Silva Filho

Advogado. Pós-graduando em Direito Constitucional e Administrativo

 

Referências

Amado, F. (2019). Direito Ambiental. Salvador: JUSPODIVM.

Barbosa, E. M. (2011). Direito Ambiental e dos Recursos Naturais. Belo Horizonte: Fórum.

Conti, I. L., & Schroeder, E. O. (2013). Convivência com o Semiárido Brasileiro. Brasília: IABS.

FORST, Rainer. Justificação e Crítica: perspectivas de uma teoria crítica da política. Editora Unesp, 2019.

Thomé, R. (2019). Manual de Direito Ambiental. Salvador: JUSPODIVM.