“Como cidadãos de uma sociedade livre, temos o dever de olhar o mundo criticamente. Mas se julgamos saber o que está errado, devemos agir de acordo com esse saber. Há uma observação famosa de que até aqui os filósofos apenas interpretam o mundo de várias maneiras; a questão é mudá-lo”.

Tony Judt[1]

Nas transformações pelas quais o Estado vem passando, insere-se como elemento decisivo a busca do equilíbrio entre os direitos individuais e os de igualdade, com o crescimento econômico imbricado em uma relação não excludente. Chega-se ao Estado social após as falhas das promessas liberais, que não confirmaram a tese de que, deixando a economia e a sociedade independentes e confiadas às leis naturais do mercado, proporcionariam aos indivíduos condições de liberdade iguais a todos, com melhores condições de vida.

Surge o Estado social como direito de compromisso, dentro do núcleo econômico do capitalismo e no contexto de justiça social e de reivindicações igualitárias, incorporando a relação de inclusão e exclusão sem se livrar do individualismo, mantendo-se adstrito à tradição liberal, embora procurando promover a realização desse Estado com a inclusão social, por meio de políticas públicas.

Esse modelo foi marcado pelo constitucionalismo social, que teve maior valorização no desenho do Estado social, no segundo pós-guerra, em um processo de reconstitucionalização na Europa, que definiu o lugar das constituições, fundado na crença de que se poderia construir uma sociedade justa e solidária com a inclusão da questão social e a erradicação da pobreza, que, por conseguinte, tornou-se característica da Constituição brasileira, com a consolidação do processo de redemocratização e alicerçada em um amplo catálogo de direitos fundamentais, com ênfase nos direitos econômicos e sociais, baseada nas experiências europeias da segunda metade do século passado.

Diante de novas tarefas, responsabilidades e necessidades de inclusão do Estado social – advindas da modificação da economia, da modernização social e dos riscos -, surgiram custos para a sua implementação associados às crises e problemas de financiamento, como a crise dos anos de 1970, que permitiu a viragem neoliberal e a transformação da relação entre o setor financeiro e o setor produtivo, com a prioridade da política monetária sobre a fiscal. Houve o questionamento se as finanças públicas do capitalismo democrático sofreram pelo excesso de democracia.

No entanto, como lembra o sociólogo alemão Wolfgang Streeck[2], o Estado teve suas crises financeiras não só em função das despesas sociais da época, mas, sobretudo, pelo endividamento e crescimento da dívida pública. O Estado passa por um período de transição do Estado fiscal ao Estado endividado, no qual salda cada vez mais suas despesas por empréstimo, acumulando dívidas para cujo financiamento tem de utilizar uma porcentagem cada vez maior de suas receitas. Dívida esta mantida primordialmente para alimentar o sistema financeiro e a nova fase do capitalismo, na transição do produtivo ao financeiro.

Nesse sentido, analisando-se a crise orçamental registrada pelo trágico endividamento dos países, não se tem manifestamente relação com as reivindicações democráticas dos cidadãos; mas, se houve reivindicações, essas vieram dos grandes bancos em situação difícil, mormente da crise de 2008 e seguintes. Como leciona o economista Jean-Paul Fitoussi[3], uma sociedade não é menos competitiva por ser mais solidária, uma vez que os fatos não demonstram que a democracia cria dificuldade ao crescimento.

Acontece que, nas últimas décadas, a política monetária apresenta-se como principal instrumento macroeconômico para estabilização, controle da inflação e a redução dos números da dívida, em total desequilíbrio com as políticas fiscais. Olivier Blancard[4], economista-chefe do FMI, na conferência “Repensar la política macroeconômica”, critica o uso da política monetária com o objetivo primordial de estabilização da inflação, que utiliza como principal instrumento as taxas de juros. Afirma que a política monetária necessita ir além da estabilidade financeira e do combate à inflação; e que a macroeconomia teria muito mais do que um só instrumento para implementá-la. Por outro lado, conforme as lições de Keynes, após o resultado da grande depressão, nos anos de 1940 a 1970, conhecido como os “30 anos gloriosos”, as políticas monetárias e fiscais mantinham uma relação equilibrada, sendo que a política fiscal se apresentava como principal instrumento da política macroeconômica.

Dessa forma, em função das crises, no caminho da estabilidade constante e controle inflacionário, diversos países, em especial na Europa, tomaram medidas drásticas, com planos de austeridade para reduzir os números da dívida pública e o salvamento de bancos, o que levou a “sufocar” os direitos sociais consagrados no constitucionalismo democrático. Tais medidas, comprovadamente, não surtiram os efeitos desejados, o que deveria servir para lições futuras.

Para Avelãs Nunes[5], professor jubilado da Universidade de Coimbra e pesquisador das crises na realidade europeia, as políticas de austeridade foram instrumentos aproveitados pelas “crises” para obrigar os povos a pagarem as dívidas do capital financeiro, desmontando o Estado social pela diminuição da produção, aumento do desemprego, baixa dos salários reais, redução de direitos sociais, asfixia financeira dos sistemas públicos de segurança social e supressão dos preceitos fundamentais definidores do Estado democrático de direito.

A austeridade beneficia uma pequena minoria do capital financeiro, além de não favorecer o desenvolvimento econômico e sim o aumento da desigualdade, que retrai o crescimento, prejudica a distribuição de renda, o consumo, além disso enfraquece o investimento, com instabilidades financeiras, econômicas e políticas. Avelãs Nunes denuncia em relatório da OIT[6], de 24.01.2012, a política de deflação salarial realizada pela Alemanha, que além de reduzir o consumo, conduziu a um aumento das desigualdades de rendimentos nunca antes registrado.

Em Portugal foram impostas políticas de austeridade de caráter recessivo e reformas estruturais, que provocaram uma grande desregulação do mercado de trabalho, privatizações de empresas públicas ou de participações públicas em empresas estratégicas, aumento de impostos, redução de salários, pensões e de prestações sociais. Como consequência dessas medidas, houve um empobrecimento vertical da população, com redução do PIB superior a 6% e uma taxa de desemprego que variou de 12,9% a 17,8% entre 2011 e 2013, com queda no investimento, sem redução do déficit, pois a dívida pública continuou subindo de 108,3% do PIB (2011) para 127,2%, no final do primeiro trimestre de 2013[7].

Para o Nobel de economia Joseph Stiglitz[8], a austeridade falhou e vem levando os estados da União Europeia à recessão, com altos patamares de desemprego e um fraco crescimento do PIB per capita. Não se pode atribuir sucesso a uma política em função de alguns momentos de recuperação econômica, esquecendo os danos que essa mesma política vem causando ao bem-estar das pessoas e à própria economia.

Como consequência dessas medidas de austeridade, a democracia é enfraquecida, tendo em vista que em muitos países os cidadãos votam por alguma mudança política, mas as decisões são tomadas fora do escopo em que são feitas suas escolhas. Na Europa, por exemplo, o pacto orçamental autoriza medidas pela Comissão Europeia ou pelo Tribunal de Justiça da União Europeia sem a intervenção dos parlamentos nacionais e dos sistemas judiciários nacionais, o que reflete em desvirtuamento do poder democrático local. No Brasil, várias medidas de ajustes fiscais e alterações legislativas foram traçadas em função ou por influência de organismos internacionais, como por exemplo, o FMI, em suas “cartas de intenções”.

No Brasil, o governo interino traz uma série de medidas de desmonte do estado social, por meio de programas radicais de austeridade, como solução para a crise. Mais uma vez a crise é utilizada como justificativa para reduzir os direitos sociais conquistados na Constituição democrática.

Desde a Constituição de 1988 sempre houve a disputa de recursos entre o financiamento dos direitos sociais e o sistema financeiro. A Constituição assentou os direitos sociais como categoria essencial, no mesmo plano de importância dos direitos civis e políticos, garantindo o financiamento desses direitos em uma espécie de orçamento mínimo social, quando destaca os recursos vinculados para saúde, educação, erradicação da pobreza, fundo de amparo ao trabalhador, meio ambiente e seguridade social.

No texto original trazia uma economia de mercado com forte planejamento estatal, nacionalista e favorecia a descentralização de receitas, em um sentido oposto à centralização exercida na ditadura militar, por meio da repartição de competências com os entes subnacionais, financiando suas demandas e, de forma cooperativa, com a repartição a Estados e municípios, o que favorecia uma maior autonomia financeira.

No entanto, já a partir da década de 1990, essa maior autonomia financeira era considerada um entrave aos planos de metas fiscais, uma vez que se alegava o engessamento da economia pela Constituição. Semelhante se fala no governo interino atual, quando se diz que “os direitos constitucionais não cabem no orçamento”.

Assim, tomando o período a partir de 1994, com a estabilização, foram feitas contrarreformas, orientando transformações na Constituição Federal, que dificultaram sua concretização, transferindo recursos ao mercado financeiro e favorecendo a tutela da renda de capital. Como lembra Gilberto Bercovici[9], priorizou-se a “Constituição dirigente invertida”, que traz a cisão entre a constituição financeira e econômica, retratada pelas políticas neoliberais de ajuste fiscal e vista como positiva para a credibilidade e confiança do país junto ao sistema financeiro. Por outro lado, a Constituição dirigente das políticas públicas e dos direitos sociais é entendida como prejudicial aos interesses do país, pois torna-se um empecilho ao desenvolvimento, causadora dos déficits públicos e crises econômicas.

Com a estabilização econômica, durante o plano real, houve um crescimento das taxas de juros – que atraiam o capital estrangeiro – e consequentemente da dívida pública (ultrapassou 50% PIB), motivando os ajustes fiscais, baseados no tripé ortodoxo dos câmbios flutuantes, superávit primário e metas de inflação, a fim de reduzir os números da dívida.

Com os ajustes fiscais, o governo federal reverteu a descentralização de receitas trazidas na Constituição Federal. Explorou as contribuições sociais para voltar à concentração de receitas, uma vez que esses tributos não eram repartidos aos estados e municípios. Assim, em média, de 1995 a 2013[10], a União concentrou 70% das receitas, enquanto os Estados 25% e municípios 5%. Os Estados também, em função da elevação das taxas de juros como um dos instrumentos de sustentação do Plano de Estabilização, foram forçados a reestruturar os bancos estaduais e a renegociar as dívidas com a União, com a imposição de várias exigências nessas renegociações, contrariando a autonomia dos entes subnacionais.

Criou-se a DRU (Desvinculação da Receita da União), por emenda constitucional, sucessora do Fundo Social de Emergência (EC nº1/1994), e que vem sendo prorrogada até os dias atuais. A DRU desvincula e desvia 20% do orçamento social para o orçamento fiscal, direcionado ao sistema financeiro. Estima-se que só na educação em 12 anos (1994 a 2006), desvincularam-se R$ 72 bilhões e que, no período de 2000 a 2007, deixaram de ser aplicados R$ 45,8 bilhões no setor. Quanto à seguridade social, foram transferidos para o orçamento fiscal R$ 278,4 bilhões, no mesmo período, o que equivale a cinco vezes o orçamento anual da saúde e quase dez vezes o da assistência social. Assim, em 2007, 65% do superávit primário, destinados ao pagamento de juros, são originados dos recursos que pertenciam à seguridade social e que foram retirados pela DRU[11].

Atualmente, no governo interino, agravando a situação dos recursos para os direitos sociais, está sendo proposta a emenda constitucional n. 143/2015 que amplia a DRU para 25% e cria a Desvinculação das Receitas dos Estados e Distrito Federal (DRE) e a Desvinculação das Receitas dos Municípios (DRM) no valor de 25%. Acontece que essas desvinculações tiram a obrigatoriedade constitucional dos entes públicos em alocarem recursos nas áreas da saúde e seguridade social, considerando-se uma verdadeira fraude à Constituição.

Além da desvinculação de receitas destinadas aos direitos sociais, o governo atual pretende estabelecer um teto para o crescimento das despesas dado pela inflação do ano anterior, bem como cancelar e diminuir programas sociais e flexibilizar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

No campo da previdência social, sob o argumento da “crise da previdência”, são reduzidos os direitos sociais, pelo que se pretende criar uma idade mínima para aposentadoria, desvincular os benefícios ao salário mínimo, aumentar a soma idade/tempo de contribuição para aposentadoria, igualando mulheres e homens, aumentar a idade de aposentadoria para trabalhadores rurais, reduzir os Benefícios de Prestações Continuadas para meio salário mínimo, reduzir a pensão por morte, além de a desvincular do salário mínimo, entre outras medidas.

Acontece que várias pesquisas desmistificam a chamada “falsa crise da previdência”, utilizada como argumento para redução dos direitos. Os economistas Evilásio Salvador[12], Denise Lobato[13] e a Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Brasil (ANFIP)[14] desenvolveram trabalhos independentes, demonstrando que não há a crise financeira da previdência social, com o suposto déficit. Na verdade, o que há é um saldo previdenciário negativo quando se verifica o resultado financeiro do RGPS. Não são levadas em consideração todas as receitas que deveriam ser computadas para apuração da seguridade social (composta da previdência, saúde e assistência social) conforme estabelece o art.195 da Constituição Federal, que dita seu orçamento próprio e exclusivo. Dessa forma, não são computadas para a previdência outras receitas financeiras como a que incide sobre o faturamento e lucro com base mais estável, além de somente a contribuição previdenciária. Em levantamento realizado de 1995 a 2014[15], o resultado da seguridade social sempre foi positivo e cobre, sobretudo, a previdência, saúde e assistência social.

Todavia, não se quer afirmar que não necessitamos de mudanças no orçamento, ou de projetos para solucionar a crise. Mas devemos analisar as prioridades nas mudanças e preservar as conquistas sociais e os direitos fundamentais, uma vez que as escolhas orçamentais tomadas pelas decisões políticas devam ser conforme os valores da sociedade. Assim, analisando o orçamento federal, tomando por base os anos de 1994 a 2014, a dívida pública se mantém acima de 40%, enquanto que as destinações à parte social (saúde, educação, assistência social, saneamento, trabalho, etc) ficam em torno de 11%[16].  Só para “juros e encargos da dívida” em 2014 foram pagos R$ 170 bilhões afora amortizações e refinanciamento, com 3,98% para saúde e 3,73% para educação. Percebemos a prioridade dos recursos públicos ao capital financeiro, o que direciona as reformas a fim de manter este parâmetro “blindando” o sistema da dívida pública e “sufocando” os direitos sociais. A dívida pública goza de privilégios jurídicos como se destaca no art.116, II da Constituição Federal, que proíbe emendas parlamentares aos serviços da dívida, além de liberar a indicação de recursos necessários. Temos ainda a Lei de responsabilidade fiscal, que permite o contingenciamento dos gastos sociais, desde que não deixem de pagar os que se referem aos serviços da dívida. Devido à falta de clareza na gestão da dívida pública, o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu em acórdão[17] um levantamento da gestão da dívida pública federal, diagnosticando os seus riscos, entre irregularidades e falta de sustentabilidade, a fim de elaborar uma matriz de controle a curto e médio prazo. Ademais, entre possíveis irregularidades e possibilidades de redução da dívida, não se discute a auditoria da dívida pública, prevista no art.26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que foi motivo, inclusive, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº59, pelo não cumprimento do dispositivo constitucional.

Assim, verificamos que as medidas tomadas pelo governo interino não se direcionam ao “andar de cima”, ou seja, a quem possui maior capacidade em contribuir, como comanda a Constituição Federal, mantendo a regressividade do sistema tributário e onerando sempre os de menor poder aquisitivo e os assalariados, que são os que mais financiam o fundo público, responsáveis por 67,03%[18], em relação a 2007, por exemplo, das receitas arrecadadas pela União, Estados, Distrito Federal e municípios, considerando a tributação sobre o consumo e a tributação sobre a renda dos trabalhadores, incluindo a contribuição previdenciária de empregadores e servidores públicos.

Essa distorção foi identificada na pesquisa realizada por Sergio Gobetti e Rodrigo Orair[19], quando verificaram que a distribuição de renda no Brasil concentra-se nos 10% mais ricos, 54,1% das rendas das famílias, enquanto que no 1% concentra 24,5% e nos 0,01% detém 10,9% dessas rendas. Identificaram ainda que no estrato dos 10% mais ricos a progressividade se torna prejudicada, pois a alíquota cresce até o último centil de distribuição, atingindo 12,1% (quem ganha entre R$ 201 e R$ 328 mil reais por ano) e cai para 7% no estrato superior de 0,05% (quem ganha acima de 1,3 milhões por ano). A principal causa foi atribuída à isenção dos lucros e dividendos distribuídos aos sócios, concedida pela lei 9.249 de 1995. Estima-se que, caso revogasse a isenção e voltasse a tributar, os ganhos do governo seriam entre R$ 42 e R$ 75 bilhões ao ano, além de proporcionar a progressividade mais justa. Ademais, Tomas Piketty[20] já alertava sobre essa distorção, afirmando que, com a livre circulação de capitais e a concorrência fiscal das últimas décadas, os rendimentos do capital são cada vez menos tributados, escapando da progressividade dos impostos e, como consequência, a tributação fiscal vem se tornando regressiva no topo da hierarquia dos rendimentos, na maior parte dos países.

A mesma lei traz a remuneração dos sócios com “juros sobre o capital próprio” a uma tributação menor do que o trabalhador assalariado, violando o princípio da igualdade, além de permitir a dedução desses juros na apuração do IR e na CSLL.

Não se fala nas renúncias fiscais que, entre 1999 e 2014, aumentaram 1.288%, com maior crescimento após 2008 com as medidas para socorrer o capital privado, destacando-se as renúncias nas contribuições previdenciárias que cresceram 275% e representaram metade das renúncias fiscais. Essas renúncias comprometem o orçamento da seguridade social. As renúncias fiscais (tributárias e previdenciárias) superam em todos os anos de 2000 a 2014 os recursos destinados individualmente para assistência social, saúde, trabalho, educação e cultura, urbanismo e habitação, desporto e lazer, sendo que, em 2014, superaram em 254% o orçamento para a saúde e 349% o da assistência social, além de fechar um valor total de 5,85% do PIB, superando o déficit fiscal daquele ano estimado em 0,63% do PIB.[21]

Mesmo com o crescimento das renúncias, a carga tributária mantém-se em ascensão, demonstrando uma maior oneração para a categoria que ganha menos, uma vez que as renúncias se concentram sobre quem possui maior renda, mantendo a distorção do sistema tributário, que passou a ser instrumento para os ajustes fiscais.

Os governos anteriores e agora o interino, que insiste no desmonte do estado social, continuam mantendo uma estrutura tributária que favorece a tributação sobre o consumo, com 47,51% sobre a arrecadação em média de 1995 a 2013, e menor sobre a renda (18,27%) e propriedade (3,27%), com uma nítida prioridade ao capital financeiro. Quando comparamos com países da OCDE, percebemos que o Brasil possui a maior carga tributária sobre o consumo, registrando 18,8% do PIB em 2012, enquanto que a Suíça, por exemplo, tem 6,1%. Já a tributação sobre a renda, lucro e ganho de capital, aparece com 6,4% do PIB, que perde somente para a Turquia (6,0%), enquanto na Dinamarca chega-se a 29,6% e na Noruega, a 20,3%.[22]

Diminuem os direitos sociais, mas mantém-se o Brasil entre os três países emergentes com maior despesa de juros nominais em relação ao PIB e um custo da dívida pública superior à média dos países da Europa (1,44% do PIB), Ásia (2,05% do PIB), América Latina (1,54% do PIB) e também do G20 dos países emergentes[23].

Esse valor dos custos da dívida compromete o que fica disponível para o fundo público no gasto com custeio, investimento e políticas sociais, uma vez que, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)[24], é necessário verificar, além da carga tributária bruta, a carga tributária líquida, após as transferências públicas e o custo total do endividamento do Estado, a fim de determinar a efetiva capacidade do gasto público no atendimento da oferta de bens públicos e da prestação de serviços ao conjunto da população. Assim, se analisarmos o ano de 2007, o Brasil, comparando a carga tributária líquida, após as transferências públicas e pagamento de juros, com o Canadá, Polônia, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Grécia, Suécia, etc, apresentou a carga líquida de 13,1%, a menor entre todos, superando apenas a Grécia.

Essas distorções e o desmonte do estado social, que vem sendo engendrado pelo governo interino, sem o respeito aos direitos fundamentais consagrados na Constituição democrática, não pavimentará “uma ponte para o futuro”, mas reescreverá o falso “novo” sem as lições do velho, o que, certamente, não solucionará a crise financeira e política.

 

Por Willame Parente Mazza

Pós-Doutor em Direito (Universidad de Sevilla – ES). Doutor em Direito Público (UNISINOS – RS). Mestre em Direito Econômico e Tributário (UCB-DF). Professor de Direito Financeiro e Tributário (UESPI). Auditor Fiscal da SEFAZ-PI.


Notas e Referências:

[1] JUDT, Tony. Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos. Tradução: Marcelo Amaral. Lisboa: Edições70, 2011. p.174.

[2] STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Tradução: MarianToldy, Teresa Toldy. Lisboa: Actual, 2013. p. 87.

[3] FITOUSSI, Jean-Paul. A democracia e o mercado. Tradução: Paulo Pedroso. Lisboa: Terramar, 2005. p.8-11.

[4] BLANCHARD, Olivier; DELL’ARICCIA, Giovanni; MAURO, Paolo. Repensar la política macroeconômica. Revista de Economía Institucional, Bogotá, v. 12, n. 22, p. 66, 2010. Disponível em: <http://www.economiainstitucional.com/pdf/no22/oblanchard22.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2015.

[5] NUNES, António José Avelãs. Apontamento sobre a origem e a natureza das políticas de austeridade. In: FERREIRA, Eduardo Paz (Coord.). A austeridade cura? A austeridade mata? Lisboa: AADFL, 2014. p. 127.

[6] ibid. p.130-131.

[7] ROMÃO, António. A crise “mata”, a austeridade “enterra”. In: FERREIRA, Eduardo Paz (Coord.).A austeridade cura? A austeridade mata? Lisboa: AADFL, 2014. p.255-258.

[8] STIGLITZ, Joseph. “Ajuste fiscal”: por que não seguir a Europa? Tradução: Mariana Bercht Ruy. [S.l.], 12 nov. 2014. Disponível em: <http://brasildebate.com.br/ajuste-fiscal-por-que-nao-seguir-a-europa/>. Acesso em: 12 nov. 2014.

[9] BERCOVICI, Gilberto; Massonetto, Luís Fernando. A Constituição dirigente invertida: a blindagem da Constituição financeira e a agonia da Constituição económica. Boletim de Ciências Econômicas, Coimbra, v. 49, p. 59-60, 2006

[10] RECEITA FEDERAL. Brasília, DF, 2015. Disponível em: <www.receita.fazenda.gov.br>. Acesso em: 10 abr. 2015.

[11] SALVADOR, Evilásio. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p. 370,377,379.

[12] SALVADOR, Evilásio. Fundo público no Brasil: financiamento e destino dos recursos da seguridade social (2000 a 2007).2008. f.395. Tese (Doutorado em Políticas Sociais) – Universidade de Brasília – Instituto de Ciências Humanas, Brasília, DF, 2008.

[13] GENTIL, Denise Lobato. A política fiscal e a falsa crise da seguridade social brasileira: análise financeira do período 1990–2005. 2006. f.177. Tese (Doutorado em Economia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Instituto de Economia, Rio de Janeiro, RJ, 2006.

[14] ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DO BRASIL. Análise da Seguridade social 2013. Disponível em: <http://www.anfip.org.br/publicacoes/livros/6>. Acessado em: 10.04.2016.

[15] MAZZA, Willame Parente. O Estado democrático de direito confrontado: neoliberalismo e política fiscal. 2016. f.348. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2016. p.246.

[16] Ibid. p.284.

[17] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Processo TC-028.192/2014-1, Grupo I, Classe V.Natureza: Levantamento. Interessado: Tribunal de Contas da União. Unidades: Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e Banco Central do Brasil. Relator: Min. José Múcio Monteiro. Brasília, DF, 22 de julho de 2015. <DISPONÍVEL AQUI>. Acesso em: 01 dez.2015.

[18] SALVADOR, Evilásio. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p. 212-213.

[19] GOBETTI, Sergio Wulff; ORAIR, Rodrigo Octávio. Progressividade tributária: a agenda esquecida. Brasília, DF, 2015. Disponível em: <http://www.esaf.fazenda.gov.br/premios/premios-1/premios-2015/xx-premio-tesouro-nacional-2015-pagina-principal/resultado-do-xx-premio-tesouro-nacional-2015>. Acesso em: 15 nov. 2015.

[20] PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução Sarah Adamopoulos. Lisboa: Temas e Debates, 2014. p. 749-750.

[21] MAZZA, Willame Parente. O Estado democrático de direito confrontado: neoliberalismo e política fiscal. 2016. f.348. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2016. p.235.

[22] Ibid. p.255.

[23] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Processo TC-028.192/2014-1, Grupo I, Classe V.Natureza: Levantamento. Interessado: Tribunal de Contas da União. Unidades: Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e Banco Central do Brasil. Relator: Min. José Múcio Monteiro. Brasília, DF, 22 de julho de 2015. <DISPONÍVEL AQUI>. Acesso em: 01 dez.2015.

[24] INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA).Carga tributária líquida e efetiva capacidade do gasto público no Brasil. Brasília, DF, 2009. p. 9-20.


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