Tendemos a pensar o indivíduo como uma categoria autossuficiente e autodeterminante e, por conseguinte, seus mandamentos e imperativos. No neoliberalismo, somos livres para sermos empresários de nós mesmos, como diria Byung Chul Han. O filósofo canadense Charles Taylor, em vários de seus trabalhos (“As fontes do self”, “Imaginários sociais modernos” e “A ética da autenticidade”), realiza uma genealogia daquilo que chamamos de indivíduo moderno, mostrando como ideais como liberdade de consciência, liberdade de opinião, direito à propriedade, empreendedorismo, dignidade humana, entre outros, não brotaram do nada; há uma história das ideias e das práticas sociais que criaram valores que pensamos serem naturais e eternos. A obra de Taylor é, como bom hegeliano, um tipo de romance de formação da subjetividade, uma grande e poderosa reflexão acerca do indivíduo moderno e seu ideal de autenticidade.

Taylor argumenta que o indivíduo autossuficiente é um dos pilares daquilo que denomina de “imaginários sociais modernos”, ou seja, a ideia de que há um eu privado, originário, solipsista, que dialoga consigo num monólogo interior e primordial. E o que seria um imaginário social? Este não pode ser tido como uma narrativa, tal qual usualmente se diz por aí em tempos de redes sociais e suas polarizações. O imaginário social não é exatamente uma mentira. Ele é algo mais profundo do que uma mera narrativa e, por isso, tendemos a pensar na autossuficiência do indivíduo, tal qual uma originalidade a priori da sociedade, da natureza, da cultura e da história.

Um imaginário social, em realidade, fundamenta-se em práticas sociais gestadas ao longo da história, que podem ser, contudo, modificadas e ressignificadas, como, por exemplo, o ideal da autenticidade de nosso individualismo moderno. Afinal, o que significa dizer que temos o direito de sermos nós mesmos? Por outro lado, o que significa termos um corpo e, ao mesmo tempo, habitarmos uma cidade com outros corpos?

O imaginário social, segundo Taylor, não se expressa apenas em termos teóricos, mas apoia-se em imagens que nos guiam coletivamente e nos formam enquanto sujeitos pertencentes a uma coletividade, cultura e tradição. Uma teoria, ao contrário, é algo apenas de posse de uma minoria, ao passo que o imaginário social é partilhado por grandes grupos sociais, como um horizonte de sentido de vida. Nós habitamos um imaginário social antes de termos consciência disso ou de problematizá-lo. O imaginário social é a compreensão que possibilita práticas comuns e um sentido de legitimidade amplamente partilhado, como a ideia da autossuficiência do indivíduo nas sociedades liberais. Mas será que a centralidade do indivíduo é o único imaginário social possível em nossa modernidade? Será que o imaginário moderno da autenticidade subjetiva pode ser resumido ao credo do neoliberalismo e de seu individualismo extremo?

Se para os antigos gregos era impossível um indivíduo se definir de modo independente da polis, da comunidade ou de um meio social, para vários modernos é justamente o contrário: somos, antes de tudo, indivíduos autossuficientes, autorreflexivos, livres para escolhermos nosso próprio caminho, independente da tradição, da cultura e da autoridade. Se o indivíduo, em várias interpretações da modernidade, é uma estrutura cristalizada em si, em visões anteriores ele era definido em relação a uma ordem cósmica maior, uma concepção ontológica de mundo, isto é, uma concepção de vida mais ampla, em que aquilo que chamamos de sujeito era apenas parte de uma grande complexidade, nunca como algo neutro e primordial. Impossível, para os antigos, sermos alguém fora da cidade: habitar a polis era uma condição necessária e fundamental para os homens. Entre os antigos, estava em questão o bem comum, e não o indivíduo enquanto tal, como para várias concepções de filosofia moderna.

Não por acaso Benjamin Constant fala da liberdade dos antigos (a liberdade da comunidade, em que só posso ser livre se todos os outros também forem) em contraposição à liberdade dos modernos (a liberdade do indivíduo autossuficiente que questiona a comunidade). Paul Ricoeur, por exemplo, argumenta que o indivíduo autorreflexivo e o cogito cartesiano seriam a grande novidade da modernidade, impensável para a sociabilidade antiga. O crescimento da consciência de si leva o indivíduo, na modernidade, a distinguir a si mesmo de sua comunidade.

Evidentemente que tudo isso ocorreu num longo processo na história das ideias filosóficas ocidentais. Nas “Fontes do self”, Taylor enfatiza que Agostinho e seus questionamentos sobre o livre arbítrio e uma primeira consciência subjetiva que reflete acerca de Deus significou uma ponte entre Platão (o mundo antigo) e Descartes (o mundo moderno). Passamos, segundo Taylor, de uma comunidade do destino, em que tínhamos um lugar dentro de um todo hierarquizado, para o ideal da escolha do indivíduo que se desgarrou da sociedade. A luz que brilha, brilha, sobretudo, dentro de mim, e não mais lá fora. Agora, sou livre para escolher meu próprio caminho. Este é fundamentalmente um dos pilares dos imaginários sociais modernos.

Aqui não se trata de contrapor os antigos aos modernos, como um “fla x flu”, e sim de pensarmos limites e possibilidades para refletirmos nosso zeitgeist. Há sempre perdas e ganhos nos processos transformadores. Hegel, melhor do que ninguém, colocou o drama histórico do indivíduo moderno apartado de sua comunidade, carente de reconhecimento, e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de retornarmos à polis grega, à sociabilidade antiga.Todavia, podemos, à luz de uma certa interpretação hegeliana, rememorar as dimensões intersubjetivas fundamentais que os antigos nos ensinaram e o valor do bem comum, assim como, ao mesmo tempo,defender o ganho da autonomia do sujeito, da singularidade e da diferença advindas da modernidade, contra o risco cada vez maior de um atomismo social e de um esfacelamento da sociedade, aprofundado, hoje em dia, pelo neoliberalismo: “Não há sociedade, apenas indivíduos e suas famílias”, dizia Margaret Thatcher.

Defender o ideal da autenticidade moderna não significa proclamar um individualismo neoliberal. Mesmo liberais políticos como Locke, Kant e Stuart Mill, apesar de possuírem o indivíduo como categoria central, estavam longe de serem pensadores individualistas. O primeiro defendia, inclusive, limites para a propriedade privada; o segundo, por sua vez, sempre se remeteu ao ideal do republicanismo: o homem não pode ser tratado como meio; ele possui um fim em si mesmo; e Mill, no âmbito de seu utilitarismo, em vários momentos explicita que as escolhas individuais não podem colocar em questão a vida da maioria.

Os imaginários sociais modernos que gestaram a perspectiva da autonomia do sujeito e da liberdade individual não são patrimônios do neoliberalismo. Diversas correntes progressistas, liberais, republicanas, marxistas e anarquistas têm respostas diferentes do neoliberalismo para o significado da autenticidade moderna e de seus imaginários sociais. Tais correntes nunca se furtaram a defender a autonomia da sociedade e de seus indivíduos. Há muito de utópico, no bom sentido do termo, quando alguém quer ser “empresário de si mesmo”. Não podemos moralizar essa questão. Essa utopia não pode ser monopolizada pelo neoliberalismo. Afinal, quem não deseja ser o autor de sua própria vida?

O neoliberalismo, entretanto, consegue, ao seu modo, oferecer às pessoas um discurso para um desejo legitimo e de pleno acordo com nossos imaginários sociais, mesmo que destroçando e corroendo os lanços fundamentais que constituem uma sociedade. A questão que se colocar é se o neoliberalismo e seu extremo individualismo seriam os únicos imaginários sociais disponíveis em nossa modernidade.

 

Por Juliano Oliveira – Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com doutorado Sanduíche pela Ludwig Maximilian-Universität (LMU), em Munique, Alemanha. Atualmente realiza estágio de pós-doutorado na Universidade Federal do Piauí (UFPI)

 

Referências

CONSNTANT, B. A Liberdade dos antigos comparada à dos modernos. São Paulo: Atlas, 2015.

RICOEUR, P. O Si Mesmo como um Outro. Campinas: Papirus Editora, 1991.

TAYLOR, C. Hegel e a Sociedade Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

TAYLOR, C. Imaginários Sociais Modernos. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2010.

TAYLOR, C. A Ética da Autenticidade. São Paulo: Realizações Editora, 2011.

TAYLOR, C. As Fontes do Self: a constituição da identidade moderna. 4.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013.