Questão deveras complexa reside na comprovação da elementar subjetiva no crime de lavagem de capitais, temática que adquiriu relevo em virtude dos desdobramentos da Operação “Lava-Jato”, a qual apura, dentre outros fatos, os possíveis desvios de recursos públicos em contratos firmados por determinados grupos empresariais com a Petrobras.

É de se notar que a criminalidade organizada procura dissociar os ativos da sua origem ilícita, valendo-se da prática reiterada de operações e transações econômicas dentro de um ambiente de aparente normalidade. Tal circunstância, por sua vez, implica na dificuldade em se demarcar os limites entre o lícito e o ilícito, sobretudo quando as atividades consistentes no branqueamento de valores são praticadas dentro de um contexto de profissionalização ou terceirização.

À luz da indigitada situação, extrai-se a dificuldade da comprovação do elemento subjetivo, o que reclama a identificação das exigências quanto à ciência da origem ilegal dos ativos no tipo penal (1), além de uma investigação a respeito de uma determinada finalidade ou intenção por parte do agente (2), isto é, um tipo penal de intenção.

No âmbito da União Europeia, quatro Estados fazem uso da possibilidade de se punir a lavagem de capitais na forma culposa, quais sejam, Bélgica, Alemanha, Suécia e Espanha, ao passo que, em outros Estados, se admite o dolo genérico, incluindo o dolo eventual, como ocorre na França e na Itália. Já o tipo penal de intenção é previsto apenas em quatro Estados, a saber: Bélgica, Grécia, Portugal e Espanha, não se podendo falar da sua transposição no espaço europeu[1].

Expressiva parcela da legislação extravagante admite o dolo eventual do agente, inclusive a brasileira, punindo o indivíduo ainda que sem o conhecimento pleno da origem ilegal dos ativos em seu poder.

No âmbito da lei de regência brasileira, o tipo penal admite unicamente a forma dolosa (direta ou eventual), não reconhecendo expressamente a modalidade culposa. A figura do dolo eventual foi mencionada no âmbito do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal 470 (“Mensalão”), haja vista que a incriminação abrange, inclusive, a terceirização profissional da lavagem[2].

No caso português, admite-se, de igual modo, o dolo eventual, nomeadamente em face da “complexidade e sofisticação do moderno mundo de negócios (em especial na esfera financeira, onde reinam o segredo e o anonimato dos agentes e onde a riqueza ‘legal’ coabita com a clandestina), dificilmente o autor das operações conhecerá, de forma positiva, a proveniência ilícita dos bens – salvo quando é o próprio autor do facto precedente”[3].

Há uma corrente doutrinária, apoiada no funcionalismo sistêmico, que sustenta a normativização do dolo, isto é, o afastamento do conteúdo ontológico ao conceito dogmático de dolo. Nesse sentido, defende-se a impossibilidade de comprovar a ciência e a vontade de praticar o fato pelo agente, em contraposição à teoria finalista da ação. Argumenta-se que o dolo implica em um risco ao bem jurídico tutelado, em virtude da violação da norma, de tal modo que “é exclusivamente o conhecimento do risco, com o qual atuou o autor, o único critério para afirmar o caráter doloso da conduta julgada”[4].

No magistério de Tavares[5], o dolo, entendido como a “vontade de realizar o comportamento típico, só adquire significado se compreendido no contexto de um processo de imputação ao sujeito em face do risco que sua conduta, assim dirigida volitivamente, representa para o bem jurídico”.

Para Fernanda Palma[6], a aproximação da doutrina do dolo de uma construção de tipicidade objetiva, embora implique em uma reformulação do elemento intelectual, “não implica uma redução arbitrária da complexidade do dolo ou a sua desvinculação dos critérios sociais de identificação dos modos de comportamento voluntário”. Sustenta, enfim, que “O comportamento doloso permanece nesta análise favorecido pela filosofia da linguagem, como um comportamento explicável consistentemente por razões e ao qual preside uma ponderação que sobrevaloriza o interesse do agente relativamente à protecção  dos bens jurídicos”.

No sistema jurídico da common law, a estrutura do delito é composta por elementos externo (actus reus) e interno (mens rea), bem como pelas defesas gerais (defenses), incumbindo à acusação a comprovação dos referidos elementos, em virtude da impossibilidade da punição dos pensamentos (cogitatio nemo poenam patitur).

Em relação ao elemento interno, o mesmo pode ser integrado por qualquer das seguintes disposições mentais: intenção (intention); conhecimento (Knowledge), descuido/temeridade (recklessness) e negligência (negligence)[7].

O recklessness, que, dentre outros, pode assumir o significado de willful blindness (erro intencional ou ignorância deliberada), corresponde à intencional ou propositada ignorância do agente em relação à natureza do fato praticado.

À luz da referida teoria, a qual encontra acolhida nas Cortes norte-americanas, as hipóteses de incidência decorrem da comprovação: a) de que o agente tinha conhecimento da elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos eram provenientes de crime; b) de que o agente agiu de modo indiferente a esse conhecimento[8].

No caso US v. Campbell, uma agente imobiliária vendeu um imóvel para um traficante por US$ 182.500, sendo que, no contrato escrito, figurou o valor de US$ 122.500, sendo pagos US$ 60.000 em dinheiro, por fora. O Júri entendeu que o elemento subjetivo pode ser extraído por inferências a partir da prova de que um réu deliberadamente fechou os olhos aquilo que teria sido óbvio para ele, sendo que o tribunal distrital concedeu uma moção para julgamento de absolvição. A Corte de Apelação, no julgamento de 28-9-1992, determinou a realização de um novo julgamento, sob o fundamento de que as provas do estilo de vida do traficante, a declaração da agente imobiliária no sentido de que o dinheiro “poderia ter sido proveniente das drogas” e a natureza fraudulenta da operação foram suficientes para criar uma questão para o Júri sobre se Campbell “deliberadamente fechou os olhos ao que de outra forma teria sido óbvio para ela”[9].

O Tribunal Supremo Espanhol vem reconhecendo a eficácia probatória da prova dos indícios, para a condenação pela prática do crime de lavagem de capitais. Os indícios consistem em: a) o incremento inusual do patrimônio do acusado; b) a inexistência de negócios lícitos que possam justificar o referido incremento patrimonial assim como as aquisições e os gastos realizados; c) a constatação de um vínculo ou conexão com atividades de tráfico de estupefacientes ou com pessoas ou grupos relacionados com os mesmos[10].

É válido afirmar a inclusão da ignorância deliberada no conceito de dolo? Isso não representaria alterar o referido conceito, prescindindo do conhecimento, ou mesmo criando uma espécie de responsabilidade penal objetiva?

Oliva García[11] entende que a referida construção implica na “desnaturalização” do dolo, assinalando que o conhecimento potencial do perigo concreto que encerra a ação também se encontra na culpa consciente, cujo campo resta praticamente eliminado em virtude de uma interpretação expansiva do dolo (eventual).

Ragués i Vallès[12], tratando da problemática dos “testas-de-ferro”, afirma que certos casos de administração formal das sociedades suscitam uma necessidade de pena não inferior aos casos de dolo eventual.

Assim, a elementar subjetiva pode ser extraída a partir de circunstâncias fáticas objetivas que norteiam o caso concreto, sendo admissível a aplicação da teoria da ignorância deliberada, cum granu salis, ao sistema da civil law, nomeadamente os ordenamentos jurídicos brasileiro e português.

Por Vinicius Lima

Graduado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2002) e Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa (2010). Doutor em Direito Público pela Unisinos (2015). Promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Ex-Professor da UNISC, Campus de Capão da Canoa (2013). Ex-Professor da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP), nas disciplinas de Processo Penal II e III. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal da FMP. Professor do Curso de Direito da ULBRA, Campus Torres/RS. Autor dos livros Lavagem de Dinheiro & Ações Neutras: Critérios de Imputação Penal Legítima (Curitiba: Juruá Editora, 2014), Teoria Hermenêutica da Responsabilidade Decisória: Direitos sociais entre Ativismo Judicial e Decisão Jurídica Democrática (Curitiba: Juruá Editora, 2016) e Decisão Judicial e Democracia: Por uma Ética da Responsabilidade no Direito Brasileiro (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017).

 

[1] Cf. AMBOS, Kai. Lavagem de Dinheiro e Direito Penal. Trad. Pablo Rodrigo Aflen da Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 27-30.

[2] Como sublinhou a Ministra Rosa Weber, “o profissional da lavagem, contratado pelo autor do crime antecedente para realizá-la, adotaria, em geral, postura indiferente em relação à procedência criminosa dos bens envolvidos, e não raramente se recusaria a aprofundar o reconhecimento a respeito. Destarte, ponderou que não admitir o crime de lavagem com dolo eventual indicaria exclusão da possibilidade de punição de formas mais graves desse delito, sendo, uma delas, a terceirização profissional da lavagem” (AP 470, Rel Min. Joaquim Barbosa, 24, 26 e 27-9-2012).

[3] Cf. CAEIRO, Pedro. “A decisão-quadro do Conselho, de 26 de junho de 2001, e a relação entre a punição do branqueamento e o facto precedente: necessidade e oportunidade de uma reforma legislativa”. Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Org. Manuel da Costa Andrade, José de Faria Costa, Anabela Miranda Rodrigues e Maria João Antunes. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 1.117.

[4] Cf. BUJÁN PEREZ, Carlos Martínez. “O conceito ‘significativo’ de dolo: um conceito volitivo normativo”. Modernas tendências sobre o dolo em Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 83. Conforme o autor, o caso do azeite de colza (STS 23-4-1992: Juiz Bacigalupo) ressaltou, na Espanha, que “o conhecimento do perigo concreto de produção do resultado se reputou como o único elemento constitutivo do ilícito doloso frente ao imprudente”.

[5] TAVARES, Juarez. Op. cit., p. 333.

[6] PALMA, Maria Fernanda. “Questões centrais da teoria da imputação e critérios de distinção com que opera a decisão judicial sobre os fundamentos e limites da responsabilidade penal”. Casos e materiais de Direito Penal. Almedina: Coimbra, 2002, p. 79.

[7] Cf. PIÑA ROCHEFORT, Juan Ignacio. La estructura de la teoría del delito en el ámbito del “common law”. Granada: Comares, 2002, p. 78.

[8] MORO, Sergio Fernando. “Sobre o elemento subjetivo no crime de lavagem”. Lavagem de Dinheiro: comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2007, pp. 99-100.

[9] US v. Campbell, j. 28-9-1992, Corte de Apelação dos Estados Unidos-Quarto Circuito. Disponível em: <http://www.bulk.resource.org/courts.gov.>. A teoria Willful blindness também está presente nos seguintes julgamentos: US v. Bornfield (1998) e US v. Prince (2000).

[10] Cf. Sentença proferida no julgamento do Recurso n.º 2077/2004, Resolução 392/2006, Ponente: Jose Ramon Soriano Soriano. Disponível em: <http://www.poderjudicial.es>.

[11] OLIVA GARCIA, Horacio. “La defensa ante la acusación por blanqueo de dinero”. I Congreso de Prevención y Represión del Blanqueo de Dinero. Valencia: Tirant lo blanch, 2009, p. 42.

[12] RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. “La responsabilidad penal del testaferro en delitos cometidos através das sociedades mercantis: problemas de imputação subjetiva”. Revista INDRET, jul. 2008, p. 20. Disponível em: <http://www.indret.com>.